O segredo do novo álbum de David Fonseca, Radio Gemini, está “num sintetizador muito pequenino”. As canções do músico português, que toca múltiplos instrumentos, nascem muitas vezes dos sons que estes sugerem, é aliás por isso que, quando David compra um instrumento novo, diz sempre ao vendedor que espera que ele “traga pelo menos dez canções”. Radio Gemini, possivelmente o álbum mais experimental do português, mistura o formato pop-rock ancorado na guitarra que David Fonseca começou a apresentar ao público na banda Silence 4 e que continuou a trabalhar de 2003 em diante, já a solo, com devaneios eletrónicos que evocam um universo quase de ficção científica.

[O ‘videoclip’ de “Oh My Heart”, single do novo álbum de David Fonseca, foi gravado no Japão. Além de protagonista, David Fonseca foi também realizador:]

Durante mais de meio ano de composição, o sintetizador já referido ia com David Fonseca para quase todo o lado, na companhia de um gravador de quatro pistas. É por isso que a gravação das canções foi um processo ambulante, não aconteceu apenas em estúdio mas também em casas, aviões, comboios, carros e quartos de hotel.  O tema “Slow Karma”, por exemplo, começou a ser feito durante um voo, garante David Fonseca em conversa com o Observador. “As canções acabaram por ter uma característica muito volante, estão todas muito ligadas aos sítios em que estava e ao que estava a acontecer quando as fiz.”

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Talvez essa composição em movimento justifique a sensação de viagem eletrónica que o álbum provoca, com interlúdios feitos de vozes distorcidas e sons inesperados. “Os sons dos instrumentos por vezes despertam cenários e são esses cenários que mais tarde dão origem a canções”, confirma o músico, dizendo ainda que “mais do que uma ideia escapista”, a experimentação com sons e instrumentos menos predominantes na sua música até aqui resultou de “uma vontade de aproximação a novos sons e sonoridades.”

A capa de “Radio Gemini”, o novo disco de David Fonseca

A eletrónica fez sempre parte da minha música mas estava no fundo. Em casa, por exemplo, tenho muito mais sintetizadores do que guitarras acústicas ou qualquer outro instrumento. Mas o som dos sintetizadores não é muito fácil de inserir na música que faço, ando sempre a tentar perceber se cabe ou não cabe. A maior parte das vezes não coube. E neste disco coube muito mais”, diz o músico.

Sing Me Something New, o  primeiro álbum a solo de David Fonseca, editado em 2003 (este é o sétimo), já tentava abrir ao ouvinte a porta de entrada num universo paralelo e algo estranho à pop mais convencional, ainda que em profundo diálogo com ela e sem receio de se deixar contaminar. Radio Gemini, disco que teve o contributo de vários músicos e uma cantora convidada, a espanhola de 19 anos Alice Wonder, leva os esforços ainda mais longe. Será, diz David Fonseca, o mote para as comemorações das duas décadas de carreira do músico e dos 20 anos de edição do primeiro álbum dos Silence 4, a banda em que David Fonseca se estreou e que, em 1998, tornou-se em poucos meses um grande fenómeno nacional.

“Provavelmente”, os 20 anos dos Silence 4 serão celebrados com concertos

“O mais complicado é não perder o que me fez começar isto”, assume o músico, a propósito das duas décadas de carreira. “É difícil não perder a motivação inicial, porque é uma motivação sempre muito juvenil, muito absurda, muito apaixonada. Se uma pessoa perder isso já está a caminho do fim, porque aquilo que mantém os projetos vivos tem a ver com essa loucura. Por exemplo, se os contabilistas fizessem música ninguém ouviria, porque a contabilidade não tem mistério e a música tem de ter. Perder o mistério é meio caminho andado para a música se tornar contabilístistica.”

Se David Fonseca quer manter a chama original que o fez chegar a esta arte, e diz que “adora compor” quase tanto quanto “adora ouvir música”, o passado e em particular os tempos de estrelato nos Silence 4 não são períodos a que tenha grande vontade de regressar, exceto para os celebrar. Diz que já não tem a “mesma idade”, é hoje outra pessoa (“Sou a mesma pessoa mas não sou”), prefere manter as memórias porque “foi tudo tão bom, e se voltasse hoje atrás já não seria a mesma coisa.”

Dos Silence 4, uma das coisas que recordo com mais fascínio é o quanto a leste estávamos de tudo o que estava prestes a acontecer. Nós queríamos ser conhecidos e queríamos que a música tocasse mas nunca esperámos que aquilo ganhasse aquela dimensão. Ninguém fazia ideia de quem nós éramos e seis meses depois estávamos a fazer um concerto no Pavilhão Atlântico, hoje Altice Arena.”

Esse fenómeno Silence 4, iniciado há 20 anos e recordado há quatro nos palcos do antigo Pavilhão Atlântico, Multiusos de Guimarães, Coliseu Micaelense ou Estádio Dr. Magalhães Pessoa, em Leiria, entre outros, faz com que David Fonseca diga hoje perceber “o que é que terá sido para o Salvador Sobral vir daquela eliminatória [final da Eurovisão, em Kiev, que venceu] e chegar ao aeroporto. É uma sensação de absurdo, nada daquilo faz sentido. No meu caso, lembro-me que morava no bairro de Santos, em Lisboa, e durante meses entrei em casa sempre com uma casaco à volta da cabeça, porque não queria que as pessoas soubessem onde morava.”

O importante, sintetiza o músico, é que isso não condicione o trabalho a ponto de o desvirtuar. No fundo, a mensagem não difere muito da que canta no tema “Hang on To Your Dreams, You Fool”, incluído no novo álbum. “Fiz sempre aquilo que me apeteceu.” Eis um exemplo: certa vez, na faculdade de Belas Artes, em que estudou, David Fonseca fez um trabalho e o professor disse-lhe que “aquilo estava tudo errado porque estava com as cores erradas.” Ele ripostou, disse que achava que estava certo mas ouviu uma exigência: dali a três meses, teria de voltar a apresentar o trabalho reformulado. Chegada a hora, entregou-o exatamente igual.

Esse sou eu, sou essa pessoa. Nunca quis normalizar-me, nunca quis fazer igual, sempre quis que o quer que fizesse fosse meu.”

Vinte anos volvidos, não foi só David Fonseca que mudou (entre muitas outras coisas, provavelmente menos importantes, foi pai), a indústria em que se move também se alterou profundamente. “Hoje é mais difícil ser músico, sobretudo para quem está a começar. Qualquer pessoa pode gravar um disco atualmente e a oferta existente alargou-se imenso. Hoje é tudo mais democrático, já não há alguém que decide quem pode ou não pode gravar, mas quem entra neste meio disputa espaço com muita gente. Sempre houve músicos mas não como agora, a quantidade é muito maior.”

Ainda capaz de ouvir álbuns (embora as playlists do iTunes e Spotify lhe sejam muito úteis), ainda capaz de ser um ouvinte entusiasta de outros músicos, como o norte-americano Ryan Adams, com quem se “identifica muito” por não ser “totalmente direitinho”, nem indie nem popularucho, David Fonseca fez agora um álbum de longa duração, de 21 temas, embora alguns sejam interlúdios. Fê-lo depois de gravar “Futuro Eu”, álbum de 2015 que tinha excecionalmente composições em português, coordenar e dirigir Bowie 70, disco de homenagem a David Bowie e compor “Grão da Mesma Mó” para Sérgio Godinho, feito que considera “um dos picos” da carreira.

Créditos: David Fonseca

“Lembro-me de ter fechado este disco [Radio Gemini], enviado tudo o que faltava enviar e pensar: e agora, vou fazer o quê?”, ri-se o músico. A resposta é: concertos. Os próximos meses serão de digressão e, até ao verão, David Fonseca tem já agendados espetáculos em Sintra, Coimbra, São João da Madeira, Porto, Loulé e Vilar de Mouros. “Há duas coisas que gosto muito de fazer: uma é compor, que é a mais difícil desta profissão, a outra é tocar ao vivo. Neste momento os ensaios estão a decorrer. Eu e a minha banda estamos na fase de aprender a tocar as canções, depois haveremos de perceber como é que as devemos tocar em palco.” É um trabalho de camadas, no fundo. “Isto é como descascar uma cebola.”