Um joga em Portugal, outro sempre encantou o público português. Na antecâmara do Portugal-Espanha, Iker Casillas e Xavi deixaram uma mensagem muito simples para todos os jogadores da Roja: “Se não desfrutarem, não vale a pena”. E foi com esta ideia, tão simples de dizer mas às vezes tão difícil de cumprir, que os dois antigos capitães abordaram o arranque de um Campeonato do Mundo inevitavelmente marcado por tudo o que se passou em Krasnodar desde o anúncio da ida de Lotepegui para o Real. É também por aqui, com uma ideia tão grande resumida numa frase tão pequena, que começamos esta crónica.

Olhando para a bancada oposta à tribuna de imprensa deste Fisht Stadium, a zona do último piso faz recordar em termos de arquitetura a construção do Cape Town Stadium, na Cidade do Cabo. Foi ali, quase há oito anos, que Portugal e Espanha se defrontaram pela última vez em Mundiais. E como duas realidades, ali tão opostas, mudaram tanto. Até naqueles pormenores que em muitas ocasiões pensamos que contam pouco ou nada mas que quem anda lá dentro nos explica que vale bem mais do que se possa crer. Um técnico com um papel com os nomes da equipa titular na véspera do jogo? Só podia acontecer a Portugal; agora, foi com a Espanha. Um selecionador despedido dois dias antes do encontro inaugural por se ter comprometido sem ninguém saber com outro clube? Só podia acontecer a Portugal; agora foi com a Espanha. Notícias de quase agressões no estádio entre o líder da federação e o capitão? Só podia acontecer a Portugal; agora foi com a Espanha.

Podíamos continuar a desfiar este rol de alterações num e noutro conjunto ao longo de vários parágrafos, mas aproveitamos a simplicidade de dois jogadores que simbolizam as últimas duas décadas para resumir a principal diferença oito anos depois entre os dois conjuntos: a Espanha criou uma era fabulosa no futebol mundial, Portugal começou em 2016 a criar a sua era. Mais prático ainda, a Espanha tenta escrever o último capítulo dessa mesma era (que depois poderá continuar, mas os protagonistas já deverão começar a mudar), enquanto Portugal tenta inventar um segundo capítulo para que se possa chamar era.

São eras que, em termos desportivos, pouco ou nenhum ponto têm em comum, mas que entroncam no mesmo pressuposto: a mentalidade vencedora e uma ideia de jogo que pode ganhar nuances táticas até ao longo de 90 minutos mas que é fiel aos mesmos princípios. Em 2010, perguntava-se até entre jornalistas por quanto ia ganhar a Espanha (que, verdade seja dita, venceu por 1-0 e com um golo irregular de Villa); agora, chegamos ao ponto de ler uma crónica do El Mundo que sublinhava a importância de Espanha não perder. Por alguma razão, na conferência antes do encontro, quer Sergio Ramos, quer Hierro falaram pela primeira vez do adversário que iriam defrontar não como “Portugal” mas como “campeão da Europa”.

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Logo no início do jogo, parte dessa ideia acabou por vir ao de cima. Diego Costa até deu o pontapé de saída, mas os espanhóis andaram a cheirar a bola quase desde o arranque por apresentarem um bloco muito mais baixo do que é normal sem bola e com pouca ou nenhuma capacidade de pressão sobre o portador, permitindo que William, Bernardo Silva ou Moutinho pudessem ter posse em circulação com um remédio santo para aquela ansiedade natural do arranque de um Mundial. Assim, e numa altura em que não havia um remate sequer à baliza, Ronaldo arrancou para a área, conseguiu colocar-se a jeito para o toque de Nacho, sofreu mesmo grande penalidade e, na conversão, inaugurou o marcador com apenas quatro minutos de jogo.

Se o grande (e natural) objetivo da Espanha era conseguir estabilizar a partida para se colocar naquela posição de conforto que permitia exprimir-se da melhor forma, Portugal teve um início verdadeiramente de sonho. E, de certa forma, também encontrou a sua zona de conforto nesta vantagem mínima: foi sabendo não ter bola sem perder o controlo do jogo, talvez com linhas demasiado recuadas em determinados momentos mas com capacidade de esticar na frente em transições que conseguiam partir a primeira reação espanhola à perda. Assim, e no primeiro quarto de hora, o único remate com relativo perigo foi mesmo de David Silva, aproveitando uma bola a pingar na área, mas de pé direito e por cima da balia de Rui Patrício.

Depois, apareceu Guedes. Ou melhor, antes tivesse aparecido: num contra-ataque rapidíssimo, o avançado do Valencia tinha tudo para definir melhor, mas acabou por ficar preso na ideia entre passar para Ronaldo ou sair no 1×1, acabando por ficar mesmo sem a bola (16′). Pouco depois, novo movimento da Espanha pela esquerda, novo cruzamento atrasado, novo remate de Silva, agora bloqueado na defesa nacional. No canto, Portugal fez em quatro toques aquilo que Espanha muitas vezes não fazia em 40: corte após canto, toque subtil de Bernardo Silva a lançar Bruno Fernandes, passe a rasgar do médio da direita para a esquerda, amortecimento de Ronaldo para a entrada de Guedes mas o miúdo voltou a ser pouco lesto para visar a baliza (21′).

Espanha precisava de chegar ao empate para ganhar outra tranquilidade e qualidade individual que superasse o coletivo do onze de Fernando Santos, mas acabou por escrever direito por linhas tortas: num lance que começa com uma clara falta de Diego Costa sobre Pepe, que nem com a ajuda do VAR conseguiu ser escrutinada, o avançado do Atl. Madrid mostrou toda a sua potência, foi para a área, aproveitou a passividade sobretudo de José Fonte e rematou cruzado para um grande golo manchado apenas pela sua origem (24′). Se o avançado que chegou a passar pelo Campeonato português parecia um poço de força, esse seu momento foi como um despertar para “La Fúria”. E Portugal andou aos papéis durante cerca de 20 minutos, a começar logo por um remate de Isco que bateu na trave da baliza de Rui Patrício, desceu na linha e acabou por sair, perante os protestos sem razão.

Tudo se tornou diferente no jogo ofensivo espanhol, com os movimentos interiores de David Silva e Isco, compensados pelas subidas nos corredores laterais de Nacho e Jordi Alba e o apoio lateral e frontal de Iniesta e Diego Costa, a deixaram Portugal encostado ao bloco defensivo, sem capacidade de saída e, pior que isso, a falhar marcações e posicionamentos. Foi assim que Iniesta, após nova jogada de envolvimento na esquerda com cruzamento de Jordi Alba, atirou a rasar ao poste (35′); foi assim que Isco, numa jogada onde fez a diagonal da direita para o meio, rematou para defesa de Patrício (42′). Mas, mesmo contra a corrente, há sempre um Homem capaz de superar qualquer maré. Esse mesmo, ele que voltou a ser Ele: com ajuda de David De Gea, que deu um frango, Cristiano Ronaldo conseguiu recolocar Portugal na frente em cima do intervalo.

O intervalo acabaria por fazer bem à Espanha e mal à Seleção Nacional, que tentou jogar com o resultado no posicionamento em campo mas pecando pela falta de capacidade em esticar jogo. Ficou demasiadas vezes na toca, sem primeira fase de construção nem lançamentos em profundidade que explorassem a velocidade nas unidades mais ofensivas. Com isso, aos 54′ estava a ganhar por 2-1 e aos 57′ já estava a perder por 3-2: primeiro foi Diego Costa, a bisar no seguimento de um lance de estratégia com David Silva a colocar na área, Busquets a ganhar a Guedes ao primeiro poste e o avançado a encostar no segundo; depois foi Nacho, na sequência de uma jogada onde Portugal foi demasiado macio na forma como foi vendo as trocas de bola entre David Silva, Isco e Jordi Alba, a sacar um remate fantástico ao ângulo inferior da baliza de Patrício.

Fernando Santos mexeu. Lançou João Mário no lugar de Bruno Fernandes, trocou Quaresma por Bernardo Silva, ainda tentou André Silva por Gonçalo Guedes. No entanto, era a Espanha que parecia estar nas sete quintas, chegando ao ponto de fazer uma prolongada posse com 50 toques sem que Portugal fizesse sequer uma interceção. Aqui, pecou. Perdeu o foco na baliza. Achou que estava tudo feito. Quis controlar em vez de matar. Esqueceu-se que do outro lado estava Ronaldo. A Espanha e Piqué, que cometeu uma falta desnecessária já perto da área e a jeito do capitão nacional. O melhor do mundo, aquele que, a seguir aos golo sofridos, pedia a bola na frente para recomeçar o jogo. Aquele mesmo que, em 13 jogos a contar para o Mundial, levava três golos. Esse mesmo, o que fez o terceiro: calções arregaçados, foco na baliza, bola no ângulo. Empate feito a três minutos do final que só não passou a nova vantagem porque o remate para golo de Quaresma foi cortado num carrinho.

A Seleção começou o Campeonato do Mundo com um empate a três bolas contra um dos principais favoritos a ganhar a prova. Não é mau, podia ser melhor, mas também acaba por ser bom olhando para o que se passou em campo. A Espanha terminou com muito mais posse e o dobro dos passes, provando que, superada toda a polémica após a saída de Lopetegui, ainda pode ter fôlego para dar continuidade à sua era no futebol. Portugal, que entrou de novo sem vencer numa fase final de uma grande competição, conseguiu ir buscar o resultado e mostrou que tem todas as condições para sedimentar a sua era. Depois, há Cristiano Ronaldo. E, sobre ele, ou Ele, basta dizer que marcará uma era de forma inevitável e eterna no futebol mundial. Ele, sozinho, marca uma era.