Raheem Sterling nunca mais esquece o dia que lhe mudou a vida. Foi o dia em que conheceu um homem chamado Clive Ellington. Era uma espécie de tutor, que tomava conta dos miúdos do bairro Saint Raphael, no norte de Londres, quando os pais não estavam por perto. Costumavam fazer passeios pela capital britânica. Às vezes jogavam snooker. Naquele dia, Clive saiu-se com uma pergunta: “Raheem, o que gostas de fazer na vida?“.

O avançado britânico – na época muito longe de imaginar que o viria a ser – ficou sem palavras. Nunca tinha pensado sobre isso. Mas a resposta saiu-lhe espontânea: “Gosto de jogar futebol”. Clive disse-lhe, então, que organizava uma liga de futebol aos domingos. “Porque não vens jogar connosco?”. Sterling foi. Uaaaaaau. “Aquele momento mudou a minha vida. A partir desse dia, era futebol, futebol, futebol. Obcecado. Completamente obcecado“, conta o jogador numa carta publicada no The Players’ Tribune.

Uma carta onde conta uma infância (e uma vida) marcada pela morte do pai, que foi assassinado quando Sterling tinha apenas dois anos. Depois disso, a mãe deixou-o, a ele e à irmã, em Kingston, na Jamaica (onde o jogador nasceu, num bairro sem saneamento básico e assolado pela violência dos gangues). Objetivo: chegar a Londres – que aos seus olhos era uma espécie de ‘El Dorado’ – para conseguir tirar um curso e dar uma vida melhor aos filhos.

Sterling num jogo pelas camadas jovens pelo Liverpool, onde começou a dar nas vistas (Clive Brunskill/Getty Images)

A infância passada a limpar casas de banho

Para isso, trabalhava como empregada de limpeza em hotéis. “Nunca me vou esquecer de acordar às cinco da manhã e ajudar a minha mãe a limpar casas de banho num hotel em Stonebridge antes de ir para a escola”, conta Sterling, que entretanto se tinha juntado à mãe em Londres. “A única coisa boa era quando a minha mãe nos deixava escolher o que quiséssemos das máquinas de comida quando terminássemos [ele e a irmã]”, recorda o jogador, que escolhia sempre o mesmo: um chocolate Bounty.

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Na escola, as coisas também não eram fáceis. Sterling era mal comportado (as palavras são dele). As aulas não o seduziam. Era muito melhor estar no recreio a correr e a fingir que era o Ronaldinho. Por isso, acabou por ser expulso. Não exatamente expulso, vá. “Disseram à minha mãe que precisava de estar num ambiente com mais atenção. Puseram-me numa sala pequena com seis miúdos e três professores”, diz. “Não estou a brincar. Não havia para onde fugir”.

Ronaldinho, a grande referência de Sterling no futebol quando era mais novo (EMMANUEL DUNAND/AFP/Getty Images)

A proposta do Arsenal e três autocarros para treinar

Sterling tinha dez anos quando despertou a atenção de vários olheiros – um deles do Arsenal. “O Arsenal queria-me. E quando o Arsenal nos quer, obviamente pensamos que temos de ir. O melhor clube em Londres, sabes? Então corri para dizer aos meus amigos: ‘vou para o Arsenal!'”.

Mas faltava convencer a mãe. Não que ela não apoiasse a carreira futebolística do filho; queria apenas que ele não fosse mais um. “Ela sentou-se e disse-me: ‘Olha, eu adoro-te. Mas eu acho que não deves ir para o Arsenal‘”. O quê??????? — perguntou Sterling (provavelmente ainda com mais pontos de interrogação do que aqueles que aqui escrevemos). “Se fores, vão ser 50 ou mais jogadores tão bons como tu. Serás apenas um número”, disse-lhe.

Palavras que podem ter parecido cruéis à época, mas que Sterling levou muito a sério. Tanto que acabou por ir para o Queens Park Rangers — “provavelmente a melhor decisão que alguma vez tomei”. Uma decisão que implicava esforço — e não apenas do jovem jogador. A mãe nunca o deixava treinar sozinho e, como estava sempre a trabalhar, era a irmã que o acompanhava.

18, 182, 140. Os números dos três autocarros que Sterling (e a irmã) apanhavam todos os dias. “Saíamos de casa às 15h15 e só chegávamos às 23h. Todo. O santo. Dia”, sublinha o avançado. A irmã ficava num café perto do campo de treinos à espera do irmão. Afinal, o sonho de um era o sonho de todos. “Imaginem ter 17 anos e fazer isso pelo irmão mais novo. E nunca a ouvi dizer ‘Nah, não quero levá-lo'”.

Aos 15 anos, chegou o Liverpool. Sterling queria aproveitar aquela oportunidade mais do que tudo. “Adoro os meus amigos do bairro. Ainda hoje são os meus melhores amigos no mundo. Mas, naquela altura, havia muitos crimes e esfaqueamentos e sentia que o Liverpool era uma oportunidade para ir embora e focar apenas no futebol”, conta.

Durante dois anos, isolou-se por completo. “Parecia um fantasma”, explica. Assim que tinha uma folga, a forma de ocupá-la nem exigia imaginação. Era sempre igual: metia-se no comboio para ir visitar a mãe a Londres e regressava no mesmo dia. Em Liverpool, vivia com um casal de 70 anos. “Tratavam-me como se fosse neto deles. Todas as manhãs, descia e já havia fatias de bacon à minha espera”.

Avançado conquistou esta temporada o primeiro título na Premier League, já pelo Manchester City (PAUL ELLIS/AFP/Getty Images)

O dia mais feliz da vida

Neste período, Sterling tinha uma morada fixa. Mas antes disso, andava sempre com a casa às costas. “Lembro-me de ser criança e de, umas três ou quatro vezes, estar a ir para casa de autocarro depois do treino e receber uma mensagem da minha mãe com uma nova morada. E ela dizia ‘é aqui que moramos agora'”, recorda Sterling. “Houve um período de dois anos em que estávamos sempre a mudar-nos porque não conseguíamos pagar a renda”.

“A minha missão era conseguir um bom contrato para que a minha mãe e a minha irmã não tivessem mais preocupações. O dia em que comprei uma casa à minha mãe foi, provavelmente, o dia mais feliz da minha vida”, conta Sterling.

As palavras finais do texto assinado pelo jogador vão, por tudo isto, para a mãe. “Se alguém merece ser feliz, é a minha mãe. Ela chegou a este país sem nada, estudou à custa de limpar casas de banho e mudar lençóis e agora é diretora de um lar de idosos”, diz. “E o seu filho joga pela Inglaterra.”