Há um vídeo muito engraçado a circular desde sábado que mostra uma zona aberta onde milhares de adeptos ingleses estão a ver o jogo com a Suécia e de repente, após o segundo golo de Dele Alli, só se vê cerveja e copos pelo ar antes dos abraços na multidão. Excessos à parte, o país que se assume como a pátria do futebol foi reconquistando o estado mais puro do jogo alicerçado numa nova geração que foi ganhando pontos nas competições de formação e chega agora com legítimas aspirações de volta a ganhar um Campeonato do Mundo. E parte desse crescimento é feito com nomes que passavam ao lado antes da prova e que esta quarta-feira, no Hyde Park, voltou a provocar aquela reação impagável por parte dos adeptos britânicos.

Exemplo paradigmático disso mesmo é Kieran Trippier, que foi destaque esta quarta-feira no Financial Times. Pela publicação em si, percebe-se que não se trata propriamente de um texto com linguagem de “futebolês”, mas consegue resumir de forma simples a importância do lateral do Tottenham no crescimento da Inglaterra, que considera ser “o jogador mais importante até ao momento do Mundial”. Fala-se da importância das bolas paradas, da capacidade/qualidade de passe e da profundidade que conseguiu ir dando ao jogo do conjunto de Gareth Southgate jogando na mesma equipa de outro lateral direito de raiz, Kyle Walker. Fala, sobretudo, de uma espécie de herói secundário numa formação onde Kane é a estrela.

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Na antecâmara dos quartos de final, falávamos aqui numa ideia geral que descrevia a Suécia: um jogo muito fácil de perceber mas demasiado complexo para ser travado. Pelo menos até agora, dia em que se cruzou com a sua antítese – a equipa que tem um jogo demasiado complexo pela qualidade técnica de jogadores como Modric, Rakitic, Perisic ou Brozovic mas que torna o futebol na coisa mais simples (e em alguns momentos bonita) do mundo. E aquilo que podia fazer a maior diferença, a questão física, foi anulada com mestria pela inteligência e capacidade guerreira de uma Croácia que fez história em Moscovo. Só mesmo um conjunto assim seria capaz de inverter a história do “It’s coming home” que, afinal, teve o seu fim antecipado.

Ainda assim, e frente a uma Croácia de Zlatko Dalic que tentou potenciar ao máximo o momento de Modric numa segunda fase de construção ao colocar Brozovic no meio-campo com Rakitic, a Inglaterra voltou a ter um início mais forte no encontro, potenciado pelo golo inaugural logo aos cinco minutos: Trippier, num fantástico livre direto ao jeito de David Beckham, marcou pela primeira vez ao serviço da seleção dos Três Leões e colocou em delírio os milhares de apoiantes em Moscovo.

Rebic, provavelmente o jogador croata que vai sair mais valorizado além das “trutas” que já jogam no Real Madrid, no Barcelona ou na Juventus, foi tentando ripostar de meia distância. Perisic apostou na mesma arma com semelhante destino: a bancada. Mesmo num meio-campo sem jogadores talhados para recuperar ou intercetar bolas, a Inglaterra conseguia controlar a partida sempre com capacidade para esticar jogo em transições pelo corredor central aproveitando os buracos entre linhas dos balcânicos. Dele Alli e Lingard definiam, Sterling estava lá para fazer as acelerações que partiam o adversário.

Por isso, de forma natural, a grande oportunidade até ao intervalo pertenceu aos ingleses, com Kane a surgir sozinho na área e a fazer o inverso de Trippier, falhando a chance mais fácil com um remate para defesa de Subasic à primeira e o remate de ângulo quase impossível ao poste na recarga (30′). O avançado pode ser o melhor marcador do Mundial, mas falhou quando não devia e os comandados de Southgate, que podiam ter quase arrumado o encontro, permitiram o “renascimento” da Croácia.

O segundo tempo começou mais morno, com um aumento significativo das “picardias” entre jogadores e das paragens. Como aconteceu a 25 minutos do final, quando Kyle Walker, após mais um corte providencial, ficou no chão, levantou-se porque a bola seguiu, voltou a aliviar da zona de perigo e Lovren atropelou Kane. O inglês ficou no chão, o croata começou mais um chorrilho de protestos, Walker caiu de novo e Modric teve aquele gesto que nenhum treinador gosta de ver, que é quando um jogador começa a colocar as mãos nos joelhos quase que dizendo numa imagem que a gasolina está quase a acabar. Também aqui, o médio do Real Madrid enganou. Ou enganou-nos: o coração desta equipa é tão grande que supera qualquer falta de pulmão.

Aos 68′, tudo mudou com o tipo de golo que parecia impossível a Inglaterra sofrer: cruzamento largo de Vrsaljko na direita ao segundo poste com o efeito a fugir da baliza e entrada decidida de Perisic, a colocar o pé numa zona onde Walker não foi a tempo de cortar com a cabeça e a fazer o empate. Que podia não ter ficado por aqui: pouco depois, numa transição que apanhou um período raro de desposicionamentos e erros de marcação dos britânicos, o jogador do Inter voltou a surgir na área fazendo a diagonal da esquerda para dentro e rematou colocado, tão colocado, que acertou no poste de Pickford (72′).

O encontro foi mesmo para prolongamento, o terceiro consecutivo da Croácia que, assim, igualou o registo da Inglaterra em 1990. E mais uma vez olhava-se para a cara de esforço do conjunto de Dalic e pensava-se que era impossível aquela equipa a quem não se podia tapar a boca porque caíam para o lado. Mais uma vez, um mero engano. Porque se é verdade que a Inglaterra estava melhor no plano físico, os balcânicos souberam gerir as suas debilidades fazendo das mesmas forças. Tanto que, desta vez, nem foi preciso chegar às decisões nas grandes penalidades para carimbar um lugar na final com a França.

John Stones, com um cabeceamento após mais uma bola parada que foi desviado de forma perfeita para o segundo poste mas que Vrsaljko conseguiu cortar em cima da linha, teve a primeira oportunidade do prolongamento (99′), ainda antes de Pickford, com uma saída por instinto aos pés de Manduzkic, manter o empate aos 105′. O avançado ficou no chão, entrou nos últimos 15 minutos de jogo ainda a coxear, mas acabou por ser preponderante nas contas finais: após uma insistência de Perisic de cabeça a colocar a bola nas costas da defesa, o futuro companheiro de Ronaldo na Juve não perdoou e fez o 2-1 (109′).

Olhando apenas para uma perspetiva física, o triunfo da Croácia foi quase um milagre, mas esta noite deixou uma lição escrita em Moscovo: a parte mental, a vontade e o querer conseguem derrubar qualquer adversidade que surja no caminho de uma equipa que tem as estrelas alinhadas para fazer história neste Mundial. E que não se resume apenas a Modric e Rakitic, dois dos melhores jogadores do mundo. Tem também Perisic, o avançado que por não marcar frente à Rússia (acertou no poste) fez com que Marc Morrison, um eletricista escocês de 26 anos que vive em Aberdeen, não ganhasse uma aposta combinada que daria 160 mil euros com apenas um investido. E tem também Mandzukic, o dianteiro que pagou toda a cerveja em Slavonski Brod, onde nasceu, no jogo dos quartos de final, numa fatura que rondou os 3.400 euros. Esta noite vai haver mais “rodadas”. E tudo porque Perisic também fez a sua aposta contra o destino para se transformar num herói deste Mundial.

Em relação à Inglaterra, sobra apenas a possibilidade de lutar pelo terceiro lugar. Como o jornalista e apresentador Jon Erlichman escreveu no Twitter, na última vez em que a Inglaterra tinha chegado às meias-finais, em 1990, não havia iPhone, Facebook, Google, Amazon, Wikipedia ou YouTube, entre muitas outras invenções. Mas há algo que parece não mudar quase três décadas depois: quando Mick Jagger vai à bola, os ingleses acabam sempre por desafinar no resultado final…