Anton Tchékhov é um dos dramaturgos favoritos do cinema. Uma pesquisa na Net revela dezenas e dezenas de adaptações de peças suas à tela (isto sem falar na televisão), das mais respeitosas às que tomam mais liberdades com os textos originais, caso de “Vanya on 42nd Street”, de Louis Malle (1994), que por sua vez adapta uma peça de David Mamet que glosa “O Tio Vânia”; “August”, realizado e interpretado por Anthony Hopkins (1996), que é “O Tio Vânia”, transposto para Inglaterra ; ou ainda “Peça Inacabada para Piano Mecânico”, de Nikita Mikhalkov (1977), sobre “Platonov”, só para referir três das mais conhecidas. Também não faltam adaptações e versões de uma das peças mais conhecidas e mais apreciadas do autor russo, “A Gaivota”.

[Veja o “trailer” de “August”, de Anthony Hopkins (1996)]

Em 1968, Sidney Lumet foi com armas e bagagens para a Suécia, levando um elenco de altíssimo coturno (James Mason, Vanessa Redgrave, David Warner, Simone Signoret, Denholm Elliott, Harry Andrews, Kathleen Widdoes), para filmar uma adaptação reverente, sisuda e magnificamente interpretada. Em 1972, há registo de uma versão rodada na então URSS por Yuli Karasik, vista quase exclusivamente nos países de Leste. Em 2003, o francês Claude Miller assinou, em “A Pequena Lili”, uma versão algo modificada da peça (sobretudo no final), com Nicole Garcia, Bernard Giraudeau, Michel Piccoli e Ludivine Sagnier. E em 2014, Christian Camargo inspirou-se nela para rodar “Dias e Noites”, cujo elenco inclui William Hurt, Katie Holmes, Jean Reno ou Mark Rylance.

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[Veja uma sequência de “A Gaivota”, de Sidney Lumet (1968)]

E agora, temos uma nova “A Gaivota” americana, assinada por um homem do palco, Michael Meyer, que também já realizou um par de filmes, e com argumento de um dramaturgo premiado, Stephen Karam. O elenco está acima de qualquer suspeita e inclui Annette Bening, mais uma vez a interpretar uma actriz depois de “As Estrelas Não Morrem em Liverpool”, e que nasceu para personificar a grandiloquente, ciumenta e insegura Irina, imponente no palco mas incapaz como mãe; Billy Howle e a diáfana Saoirse Ronan, que vimos juntos em “Na Praia de Chesil” e aqui são igualmente óptimos nos jovens e tão impetuosos quanto ingénuos Konstantin e Nina;  Elizabeth Moss no frasquinho de auto-piedade que é Masha, Corey Stoll em Trigorin, Brian Dennehy no bonómico e padecente Sorin, Mare Winningham como Polina e Jon Tenney no acomodado Dorn, médico como o próprio Tchékhov.

[Veja o “trailer” de “A Gaivota”]

Esta peça de final trágico a que Tchékhov insistiu em chamar uma comédia, a abarrotar de personagens patéticas, que amam quem não devem, estão resignadas ao que a existência lhes distribuiu, ou acabam frustradas nas suas vidas, paixões e desejos de realização e felicidade, é abordada por realizador e argumentista com o temor de que resulte “teatral” em excesso, que apresente a fidelidade rígida do “teatro filmado”. Daí que Michael Meyer não perca uma oportunidade para nos assinalar, com uma câmara muito atarefada, que esta “A Gaivota” é afirmativamente cinematográfica; e que Stephen Karam tenha trocado as voltas à cronologia da obra, aqui narrada num enorme “flashback”, e cortado pedaços sortidos ao texto, redundando num filme “mexido”, aligeirado e truncado na sua gravidade perfeitamente calibrada, e ao qual não teria pesado durar mais 20 minutos ou meia hora.

[Veja a entrevista com Annette Bening]

São os actores, os mais experimentados como os mais novos, com as suas personagens bem integradas num cenário campestre e estival americano que passa perfeitamente por russo, que nos mantêm absorvidos na acção dramática, quando o que Meyer e Karam fazem é distrair-nos dela a todo o pé de passada; e que não permitem que esta “A Gaivota” vá perdendo altitude, entre em “vrille” e se despenhe no lago da propriedade do velho e achacado Sorin, fazendo desta fita uma proposta aceitável para ver numa noite de Verão. É para eles, e exclusivamente para eles, que vão as minhas três estrelas da classificação.