Foi há 200 anos que Frankenstein viu a luz do dia. O romance nasceu em 1816, “o ano sem verão”, num serão à luz das velas junto ao lago Lemano, na Suíça, depois de um desafio lançado por Lord Byron. Publicado dois anos depois, tornou-se rapidamente popular, sendo hoje considerado o primeiro do género de ficção científica. Tal como todos os grandes escritores, Mary Shelley, a mulher que deu vida ao monstro, estava à frente do seu tempo. A popularidade que Frankenstein teve no século XIX ecoou ao longo dos séculos, inspirando outros autores, outros livros e todo o tipo de adaptações. No cinema, teve sempre especial destaque, com a primeira versão a datar de 1910, quando os filmes não tinham som e duravam pouco mais de dez minutos. Foi, contudo, nos anos 30, quando os filmes de terror começaram a tomar conta de Hollywood, que o monstro criado pelo cientista Victor Frankenstein a partir de cadáveres se tornou num fenómeno.

Em 1931, logo após “Drácula”, os Universal Studios lançaram “Frankenstein”, com William Henry Pratt (conhecido pelo muito mais exótico nome de palco Boris Karloff), até então um ator desconhecido, no papel principal. O filme é o primeiro a ser exibido na esplanada da Cinemateca, no âmbito de um ciclo muito especial dedicado ao romance de Mary Shelley que arranca esta sexta-feira à noite. Este incluiu ainda dois dos filmes da série da Hammer Film, lançada em finais da década de 50, e outras igualmente míticas longas-metragens inspiradas na história do monstro de Mary Shelley, mas nenhum deles marcou tão profundamente a história do cinema e de Hollywood como o de 1931.

Hoje, em 2018, quando pensamos em Frankenstein, é a imagem da cabeça cosida de Boris Karloff e do pescoço atravessado por dois grandes parafusos, que nos vem à cabeça. Por mais adaptações que se façam (a mais recente é de 2015 e chama-se simplesmente “Frankenstein”), o monstro de Frankenstein será sempre Karloff que, num golpe de sorte, conseguiu o papel que lhe valeu uma vida inteira de sucesso na indústria cinematográfica.

[Trailer de “Frankenstein”, a adaptação de 1931 com Boris Karloff no papel principal:]

Do cinema mudo às grandes produções de Hollywood

Apesar de o filme de 1931 ser o mais conhecido e o mais icónico, a primeira adaptação cinematográfica do romance de Mary Shelley — a história de um jovem estudante de medicina, Victor Frankenstein, que decide criar um monstro a partir de cadáveres que rouba de cemitérios e hospitais e que depois ganha vida graças a uma máquina por ele criada — foi feita na época do cinema mudo, em 1910, pelos Edison Studios, que pertenciam a nada mais nada menos do que Thomas Edison. Durante várias décadas, achou-se que esta primeira versão de Frankenstein se tinha perdido, conhecendo-se apenas uma sinopse e duas imagens publicadas a 15 de março de 1910 no catálogo The Edison Kinetogram. Até que, em meados dos anos 70, foi revelada a existência de uma cópia comprada na década de 1950 por um realizador do Wisconsin, entretanto restaurada e disponibilizada livremente.

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Escrito e realizado pelo norte-americano James Searle Dawley (responsável por adaptar para o cinema clássicos como “O Cântico de Natal”, “Branca de Neve” ou “A Cabana do Pai Tomás”), “Frankenstein” tinha cerca de 14 minutos de duração. Descrito como “uma adaptação livre da famosa história da Sra. Shelley”, tinha um elenco composto por apenas três atores — Augustus Phillips (Dr. Frankenstein), Charles Ogle (monstro) e Mary Fuller (noiva do cientista). Nesta versão, o monstro — um ser alto e estranho, com dedos longos e cabelos em pé — é criado por Frankenstein num laboratório através de um processo químico. Tal como na história original, este revolta-se contra o seu criador (que não parece muito satisfeito com a criação desde o início), em vias de se casar, até à noite de núpcias, altura em que “a criatura com uma mente perversa” desaparece miraculosamente, vencida pelo “verdadeiro amor”.

De acordo com Karen Laird, autora de The Art of Adapting Victorian Literature, 1848-1920, “Frankenstein” foi filmado durante três a quatro dias no Edison Studio, no Bronx, em Nova Iorque, e produzido de forma a eliminar os elementos de terror do romance, enfatizando, em vez disso, os “problemas míticos e psicológicos” da história. “Portanto, sempre que o filme difere da história original, tem por objetivo eliminar os aspetos repulsivos [do romance] para a audiência das imagens em movimento”, escreveu a autora.

[O filme completo dos Edison Studios, com Charles Ogle no papel do monstro:]

Cinco anos depois da versão dos estúdios Edison, surgiu, também nos Estados Unidos da América, uma outra adaptação do romance de Mary Shelley. “Life Without Soul” foi produzido pela Ocean Film Corporation, realizado por Joseph W. Smiley e escrito por Jesse J. Goldburg. Este conta a história de um cientista, Dr. William Frawley, que cria um homem a partir de uma estátua (história que não deixa de fazer lembrar a lenda do Golem, adaptada no mesmo ano por Paul Wegener e Henrik Galeen). Esta criatura sem alma, o “Brute Man”, assassina a irmã do seu criador na sua noite de núpcias, o que conduz a uma perseguição pela Europa que termina com a morte do monstro e de Frawley, que perece de exaustão. A única referência direta ao romance de Mary Shelley aparece no final do filme, quando se descobre que tudo não passou afinal do sonho de um adolescente, que adormeceu enquanto lia Frankenstein.

O elenco desta adaptação contava com os atores William A. Cohill (Dr. William Frawley), Pauline Curley (Claudia Frawley) e Percy Standing (monstro) nos papéis principais. A interpretação de Standing, que teve direito a pouca caracterização, foi muito elogiada na altura. Não se conhece nenhuma cópia de “Life Without Soul”, que seria mais longo do que o seu antecessor “Frankenstein” e composto por cinco partes. Além destes dois filmes, existe ainda, da época do cinema mudo, pelo menos uma adaptação europeia. “Il Mostro di Frankenstein”, uma produção italiana, estreou em 1921. Curiosamente, “Il Mostro di Frankenstein” é um dos poucos filmes de terror realizados em Itália — onde se produziu muito bons filmes de terror a partir da década de 1960 — antes de meados dos anos 50. O filme também se encontra perdido, conhecendo-se apenas algumas imagens e material de promoção.

O homem antes do monstro

Antes de existir o monstro, existia o homem. William Henry Pratt nasceu em Inglaterra, a 23 de novembro de 1887, e cresceu em Enfield, no condado de Middlesex, onde foi criado pelos irmãos mais velhos depois da morte da mãe, Eliza (Pratt era o mais novo de nove irmãos). Depois de concluir o ensino secundário, frequentou o King’s College, em Londres, com o objetivo de seguir a carreira diplomática, um plano que acabou por abandonar em 1909, quando deixou a faculdade, o país e a família, e se mudou com malas e bagagens para o Canadá. Depois de alguns trabalhos itinerantes, nomeadamente em campos agrícolas, aventurou-se no mundo do teatro e do cinema, apresentando-se, desde o início, como Boris Karloff.

Ninguém sabe ao certo onde é que William Pratt foi buscar o nome Boris Karloff, até porque a informação disponibilizada pelo próprio não faz muito sentido. De acordo com o ator, o nome “Boris” deveu-se simplesmente ao facto de ser estrangeiro e exótico, enquanto “Karloff” seria um nome de família. A sua filha Sara, porém, garante que o pai não tinha familiares eslavos. Por outro lado, houve quem chegasse a o romance The Drums of Jeopardy, de Harold MacGrath, como inspiração. Este conta a história de um cientista russo louco chamado Boris Karlov. O problema é que o livro de MacGrath (curiosamente alvo de uma adaptação cinematográfica no mesmo ano da estreia de “Frankenstein”, em 1931) só saiu em 1920, muito depois de Pratt se estrear como ator e de começar a usar o nome Boris Karloff em peças de teatro e filmes mudos.

Uma outra teoria diz respeito ao romance de fantasia H. R. H. The Rider, de Edgar Rice Burroughs, e à personagem Boris de Karlov, um príncipe. Só que, tal como The Drums of Jeopardy, o livro só saiu mais tarde, em 1915. O que parece ser mais certo é o motivo da mudança de nome. Segundo Gregory William Mank, autor de Bela Lugosi and Boris Karloff, William Pratt terá decidido usar um pseudónimo por causa da família. Os irmãos de Karloff eram todos diplomatas e o ator temia que o seu trabalho os envergonhasse de alguma forma. Foi, aliás, só depois de alcançar o sucesso que o inglês se voltou a reunir com a família.

[Excerto de “The Criminal Code” em que aparece Boris Karloff, no papel de Galloway:]

Boris Karloff terá chegado aos Estados Unidos da América no final da década de 10, quando tinha cerca de 30 anos, conseguindo alguns papéis em filmes mudos de Hollywood. Os primeiros terão sido em “The Lightning Raider”, uma série de ação de 15 episódios realizada por George B. Seitz em 1918, e “The Masked Rider”, um western também com 15 partes realizado por Aubrey M. Kennedy em 1919 e filmado nos Estados Unidos e no México. Karloff participou no segundo capítulo deste, onde fez de mexicano — uma personagem “exótica” como muitas outras que desempenhou nos anos seguintes.

Mas o ano da viragem foi 1931, altura em que conseguiu os primeiros papéis verdadeiramente relevantes em filmes como “The Criminal Code”, “Five Star Final” e “The Mad Genius”. Foi graças a estes que, segundo reza a história, chamou a atenção do realizador James Whale, que tinha sido contratado pelos Universal Studios para produzir a adaptação cinematográfica de Frankenstein e andava à procura de um ator que desse vida ao monstro.

O monstro que podia ter sido Lugosi

Foi só nos anos 30 que Frankenstein voltou a ser tratado no cinema. A ideia de adaptar o romance de Mary Shelley surgiu na sequência do sucesso de “Drácula”, produzido pela Universal Studios com base na peça de teatro homónima de Hamilton Deane e John L. Balderston, que por sua vez tinha sido inspirada no romance de Bram Stoker. Realizado em por Tod Browning, “Drácula” rendeu 700 mil dólares (a 48 horas da estreia do filme no Roxy Theatre de Nova Iorque a 12 de fevereiro de 1931 já tinham sido vendidos 50 mil bilhetes), o maior lucro da Universal até então. Percebendo o potencial deste género de produções, o responsável pela produção, Carl Laemmle Jr. anunciou imediatamente que já havia planos para outros filmes de terror. Entre eles estava “Frankenstein”, com realização a cargo de James Whale, que viria a ser responsável por alguns dos filmes de terror mais icónicos da década de 1930 e da Universal, que se tornou pioneira no género.

Bela Lugosi, a estrela húngara de “Drácula”, tinha esperanças de conseguir o papel de Victor Frankenstein, só que Carl Laemmle Jr. estava mais interessado em vê-lo como monstro. Depois de fazer de vampiro, era natural que Lugosi, nascido em 1882, no antigo Reino da Hungria, se transformasse no monstro do Dr. Frankenstein. Só que as coisas não aconteceram como Laemmle contava — depois de vários testes de figuração (os relatos da época dizem que Lugosi ficou a parecer o Golem do filme alemão de 1915), Lugosi acabou por desistir do projeto.

Bela Lugosi a atacar a indefesa Frances Dade (Lucy Weston) na adaptação de 1931 de “Drácula”

A decisão tomada pelo ator húngaro é geralmente apontada como o maior erro da carreira, já que, depois de “Drácula”, Lugosi nunca mais conseguiu um papel à sua altura, vivendo na sombra do vampiro até à data da sua morte, a 16 de agosto de 1956. Esta porém terá sido tomada tendo em conta o papel que lhe terá sido apresentado, muito menos interessante do que o interpretado por Karloff. No guião que terão dado a Lugosi, o monstro do Dr. Frankenstein era uma espécie de máquina assassina, sem qualquer profundidade, o que terá levado Bela Lugosi a afirmar: “Era uma estrela no meu país, não serei um espantalho aqui”. Ironicamente, Lugosi vestiria o papel do monstro mais de uma década depois, em “Frankenstein Meets the Wolf Man” (1943).

Numa entrevista dada em 1963, Boris Karloff relatou o momento em que foi convidado pelo realizador James Whale: “Ele viu-me no refeitório [nos estúdios da Universal]. Tinha a minha melhor maquilhagem o meu melhor fato — estava a interpretar um papel de outro género —, e convidou-me para a mesa dele para beber um café. Disse que gostava que eu fizesse os testes de figuração para o monstro e pensei: ‘Bem, isso não diz nada a favor da minha maquilhagem e do bom fato’, mas fiquei muito contente”, recordou. “Tinham um ótimo maquilhador no estúdio chamado Jack Pierce e ele experimentou e trabalhou na maquilhagem durante duas ou três semanas até dizer ‘agora estamos prontos para a fotografar’. Eles gostaram da maquilhagem, do teste e eu fiquei com o papel. Foi assim que tudo começou.”

Boris Karloff e Elsa Lanchester na sequela de 1935 “The Bride of Frankenstein”

Questionado sobre se gostou logo da personagem, Karloff admitiu que era um papel muito desafiante e “tremendamente interessante” porque se tratava de “uma criatura completamente desamparada, desarticulada, num mundo hostil, sem conseguir falar e que tinha de comunicar com as pessoas. Foi um desafio encontrar uma forma de o fazer”. E o ator inglês fê-lo como ninguém — pela primeira vez desde que se libertou das páginas do romance de Mary Shelley, o monstro de Victor Frankenstein ganhou profundidade e uma existência própria, tornando-se mais real, mais credível e, por conseguinte, mais aterradoramente humano.

“Frankenstein” estreou no Mayfair Theatre, em Nova Iorque, a 4 de dezembro de 1931, rendendo 53 milhões de dólares à Universal Studios na primeira semana. Passado um ano, o lucro tinha ascendido aos 1,4 milhões de euros. As críticas não podiam ter sido melhores. Ao contrário de Lugosi, que ficou para sempre associado ao Conde Drácula (quando morreu, foi enterrado com a capa do vampiro), Karloff conseguiu aproveitar a fama recentemente adquirida e desenvolver uma carreira de sucesso no cinema de terror longe de “Frankenstein”, encarnando personagens quase tão míticas como o sacerdote Imhotep, em “The Mummy” (1932), o Dr. Fu Manchu em “The Mask of Fu Manchu” (1932), e o Professor Morlant, em “The Ghoul” (1933).

Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Karloff só voltou mais duas vezes a Frankenstein, nas sequelas “The Bride of Frankenstein” (1935) — que imortalizou Elsa Lanchester no papel da noiva, com o seu cabelo preto ondulado e madeixas brancas em forma de raio, apesar de só aparecer durante alguns segundos — e “The Son of Frankenstein” (1939) — que contou com a participação de Bela Lugosi no papel de Ygor, um ferreiro com uma deformação no pescoço. A primeira foi produzida e realizada por Carl Laemmle Jr. e James Whale, a dupla vencedora, mas a segunda foi já da inteira responsabilidade de Rowland V. Lee, que tinha realizado a comédia “Service de Luxe” para a Universal em 1938.

[Trailer de “The Mummy”, de 1932. O filme teve uma nova versão em 1959 e em 1999:]

Depois disso destes dois filmes, Boris Karloff fechou a porta. “Já não havia grande coisa no monstro para desenvolver. Tínhamos chegado ao limite”, recordou anos mais tarde, admitindo ter percebido que, a partir dali, a história perderia todo o sentido e o monstro não seria mais do que um “adereço” sem graça. Mas apesar de ter enterrado a criação, Karloff não enterrou o criador — em 1958, vestiu a pele de Victor Frankenstein no filme independente “Frankenstein 1970”, que mistura o romance de Mary Shelley com os nazis, explosões radioativas e a Segunda Guerra Mundial, um enredo nada estranho para os filmes de ficção científica da altura.

Boris Karloff morreu a 2 de fevereiro de 1969 num hospital de Midhrust, em Sussex, na sequência de uma pneumonia. Tinha 81 anos. O seu “Frankenstein” viveu para sempre.