Foi o único dos 27 arguidos que falou esta terça-feira em tribunal, mas ninguém lhe viu a cara. As ameaças de morte a si e à sua família empurraram-no para um programa de proteção de testemunhas que lhe permitiu não comparecer no Campus de Justiça, em Lisboa, onde está a ser julgado com dois ex-coordenadores da Polícia Judiciária, um militar da GNR e vários suspeitos ligados ao tráfico de droga internacional. António Benvinda falou por videoconferência e só se ouviu a sua voz. Suficiente para descrever como uma rede de tráfico de droga internacional tentou passar 280 quilos de cocaína por Portugal, com destino a Inglaterra, num contentor de enlatados de ananás. Problema: a droga desapareceu misteriosamente.

António Benvinda fala com convicção, mas por vezes tropeça na memória. Os arguidos escutam-no com atenção. Na fila da frente, os ex-coordenadores da PJ, Carlos Dias Santos e Ricardo Macedo, vão tomando notas da sua descrição. Outros comentam amiúde o que vão ouvindo. Benvinda começa por falar sob uma condição: não ser interrogado pelos advogados dos co-arguidos, mas apenas pelos juízes. Ainda é de manhã, apesar do atraso no início da sessão. A advogada Ana Cotrim — que também chegou a ser arguida no processo — contesta. O seu cliente, João Freitas, ficou retido na cadeia do Porto por lapso dos serviços prisionais na data do julgamento, não está presente e não quer que seja produzida prova que o envolva. Acaba por se deixar convencer e o interrogatório arranca.

O arguido começa por identificar-se. Diz que é funcionário público, trabalhou como inspetor da PJ, mas já saiu há mais de 20 anos. Não especifica o que fez todos estes anos nem como estreitou relação com o coordenador da PJ Dias Santos, mas fala dele como alguém que conhece. Conta que foi precisamente João Freitas que, em maio de 2013, o contactou a pedir ajuda. Estava a trabalhar para “uns ingleses” que queriam trazer um contentor com droga da Colômbia e precisavam de um despachante oficial conhecido que fechasse os olhos e deixassem contentor entrar no País sem grande controlo.

Dias Santos era “um facilitador de negócios”

António Benvinda conta que falou de imediato com Dias Santos, “porque sempre foi um facilitador desses negócios”. Ainda lhe propôs um nome de um despachante mas, dias depois, acabaria por ser o coordenador da PJ já reformado a escolher um outro nome aparentemente da sua confiança.

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Estava tudo preparado. O contentor chegaria nos primeiros dias de junho e seria depois entregue a João Freitas, que o faria chegar aos ingleses. Dias Santos estaria feito com o então coordenador da PJ, responsável pela investigação do tráfico marítimo, Ricardo Macedo. E ambos iriam receber 15% do valor total da mercadoria.

Em tribunal, Benvinda diz que o fez por dinheiro. “Por quanto? 100 euros?”, pergunta, a certa altura um dos juízes. “Não, estava a pensar ganhar 100 mil, mas este valor nunca foi combinado”, acabou por admitir o arguido.

Parecia estar tudo combinado, mas naquele dia de junho um inspetor da PJ pôs na cabeça que aquele contentor trazia droga. Havia referências a isso numa informação enviada pela polícia francesa e o inspetor queria confirmar as suspeitas. António Benvinda não o referiu esta terça-feira em tribunal, mas detalhou-o em sede de instrução, segundo o despacho de pronúncia consultado pelo Observador: o coordenador Ricardo Macedo tentou impedir a operação, mas não o conseguiu. Desse documento consta ainda uma estimativa, que o próprio arguido fez: estariam em causa 280 quilos de cocaína.

O contentor acabaria por ser alvo de uma operação policial no Montijo. A polícia cortou uma série de latas de ananás, de 600 gramas, à procura da droga. E Dias Santos acabaria por telefonar a Benvinda a dizer que, afinal, o plano tinha sido abortado. O contentor não tinha passado, a droga nas latas tinha sido apreendida e os ingleses iriam ver essa informação nas notícias — como, aliás, era hábito ver o coordenador à frente de conferências de imprensa sobre grandes apreensões de droga.

O problema é que foram passando os dias e essa informação nunca chegou. Os jornais e as televisões nada deram. “Passadas duas semanas, o João Freitas voltou a vir ter comigo com os ingleses e trazia um senhor tipo índio, colombiano”, descreveu em tribunal. Em fase de instrução, foi ainda mais descritivo e disse que estes ingleses eram todos loiros, musculados, com tatuagens e que pareciam consumir “pastilhas”, dado o comportamento. Já o colombiano, chamava-se “Tony”.

Nesse encontro, Tony terá dito que a droga, afinal, não vinha em latas, mas escondida nas paletas enroladas em lã de rocha para despistar possíveis sensores. Tinha sido o próprio Tony a acondicionar a droga ainda na Colômbia. Ou seja, alguém estava a mentir naquela história.

O arguido terá falado imediatamente a Dias Santos. Propôs-lhe falar diretamente com os colombianos, “mas ele não quis”, chegou a ir com ele a Torres Vedras para que ele falasse com Ricardo Macedo. E nada.  “Esta situação com os colombianos estava a tornar-se insustentável, o chefe dos colombianos disse que também estava em jogo a família dele, disse que já tinha mandado saber da minha vida, da minha família e das minhas casas”.

“O Tony passa-me o telefone para falar com o Papy, que me ameaça a mim e à minha família, a partir dai não havia mais nada a fazer. Isto é um resumo breve daquilo que se passou”, disse em tribunal.

Mais tarde sugeriu que os próprios colombianos falassem diretamente com Ricardo Macedo, através do advogado Vítor Carreto Ribeiro, que já representou Franclim Lobo e que também chegou a ser arguido no processo. “Disseram-me que ele era um homem bom e que não tinha nada a ver com o que tinha acontecido”, reproduziu Benvinda. As suspeitas adensavam-se. Quem tinha ficado com a droga?

João Freitas, o traficante com ligações ao FC Porto

O arguido lembra que, desesperado, acabou por fazer uma espera ao coordenador Dias Santos. Agarrou-o pelos colarinhos, como se lê no despacho de pronúncia, mas ele acabaria por libertar-se e seguir a alta velocidade no carro. Nunca mais o viu.

As ameaças foram-se agravando. Sentia-se perseguido. Até que decidiu ligar para o piquete da PJ, que depois o põe em contacto com um inspetor. A pedido dele, ainda teve alguns encontros com alguns envolvidos no processo, fazendo o papel de agente encoberto, todos eles monitorizados pela PJ. “Queriam consolidar a prova”, disse em tribunal.

O coletivo de juízes ainda tentou perceber que ligação tinha o arguido com João Freitas, mas ele disse que foi contactado por ele pouco antes da transação. E que os primeiros contactos foram “exploratórios”. Em fase instrutória, o ex-inspetor explicou que João Freitas terá ligações ao FC Porto, que se desloca várias vezes à Colômbia e que até terá sido ele um dos responsáveis pela contratação de Jackson Martinez. Disse ainda que sabia que ele era casado com uma polaca e que viviam em Marbella. Freitas está agora preso no Porto por causa de um processo de tráfico de droga.

A tese de António Benvinda acabaria por ser posta em causa, já no final da sessão, pelo advogado de Dias Santos. Aos jornalistas, Carlos Melo Alves perguntou: “E havia mesmo droga no contentor?”, anunciando que o antigo coordenador da PJ também vai prestar declarações em julgamento.

Franclim Lobo num processo à parte

O julgamento que envolve os ex-coordenadores da Polícia Judiciária, Dias Santos e Ricardo Macedo, e um militar da GNR acusados de corrupção começou com menos dois arguidos: Franclim Lobo, conhecido como barão da droga, e a única mulher no processo, Ana Luísa Caeiro. Estes dois arguidos encontram-se em parte incerta e o coletivo de juízes decidiu que serão julgados em processos à parte.

O caso segue agora com 27 arguidos, quatro dos quais não compareceram na primeira sessão em tribunal. Um deles pediu para não estar presente por motivos profissionais, outro está preso no Porto e, por erro dos serviços prisionais, não foi trazido para Lisboa. Há ainda dois arguidos que faltaram.

Entende o Ministério Público que os dois elementos da PJ, além de darem informações às organizações criminosas que protegiam, através dos contactos com os pretensos informadores, por vezes recebiam informações das mesmas organizações relativamente ao tráfico desenvolvido por organizações concorrentes. Carlos Dias Santos e Ricardo Macedo “utilizavam por vezes tais informações na UNCTE para fazer bons serviços com apreensões de droga e assim credibilizar os pretensos informadores” e serem reconhecidos pelos seus superiores, refere a acusação.

No processo julgam-se crimes de tráfico de droga, associação criminosa e corrupção com vista ao tráfico e corrupção passiva para prática de ato ilícito.