O realizador norte-americano Martin Scorsese afirmou que as escolas de cinema “são extraordinárias”, mas que “ninguém pode ensinar como fazer um filme”, já que a chave é ter “entusiasmo, capacidade e destreza” e “ter algo a dizer”.

“É indiferente a escola de cinema que se frequenta, isso tem que vir do estudante”, disse Scorsese na quarta-feira, durante uma reunião com o público, realizada no Teatro Jovellanos de Gijón, em Espanha. A reunião foi feita no âmbito da homenagem ao realizador, distinguido com o Prémio Princesa das Astúrias para as Artes, que será entregue sexta-feira, em Oviedo. “Se precisarem de dizer algo”, vão sempre encontrar “forma de o fazer” através do cinema, garantiu Scorsese.

No evento, organizado pelo argumentista e realizador Sergio Sánchez, o realizador de “O Aviador” (2004) contou sua infância no bairro de Little Italy, em Nova Iorque, onde o sofrimento causado pelos ataques de asma foram, e continuam a ser, um fator limitante na sua vida.

“Tive muitos ataques de asma e levaram-me muito ao cinema”, especificou, antes de dizer que partilhar essas experiências com a sua família fez com que a sétima arte se tornasse uma “realidade” para ele. Aliás, Martin Scorsese manifestou-se um defensor do formato clássico do cinema, projetado numa grande tela e visto com companhia, mostrando preocupação por se viver uma época em que se questiona o futuro do cinema, perante a revolução tecnológica e o surgimento de plataformas como Netflix ou a Amazon.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Da mesma forma que há pessoas que preferem pedir entrega de comida ao domicílio e outras que preferem continuar a ir ao restaurante, há um público que, como é o caso do realizador norte-americano, opta por desfrutar da “experiência do cinema”, uma “questão-chave” que é necessário proteger para salvaguardar o seu futuro, considerou.

O autor de “Mean Streets” (em português, “Os cavaleiros do asfalto”) e “Taxi Driver” (1976) afirmou que os filmes continuam a ser exibidos nos cinemas antes de serem vendidos para serem vistos em casa através de plataformas como a Netflix, que tem financiado o seu mais recente filme, “The Irishman”, no qual participam três dos seus atores de sempre: Robert de Niro, Joe Pesci e Al Pacino.

O cinema de onde venho e que pretendo manter, restaurar e respeitar tem de ser visto com público”, sublinhou Scorsese.

O cineasta confessa não estar “muito bem informado” sobre a Internet, mas que não pode ignorar o novo modelo de consumo de cinema, especialmente por parte dos mais jovens, como comprova com uma das suas filhas.

Filmes recentes como “Dunkirk”, “O primeiro homem” ou “Moonlight” são feitos para serem vistos nesse formato, “para grandes públicos, para vê-los com a família ou amigos”, e é necessário garantir a sua estreia nas salas, embora, como no caso de “The Irishman”, sejam financiados pela plataforma Netflix, devido à incapacidade dos estúdios tradicionais para o fazer.

No seu novo filme, Scorsese retoma uma nova história sobre grupos de gangsters, reflexo do mundo em que cresceu, o bairro nova-iorquino de Queens, onde nem todos eram criminosos e violentos, onde tinha uma família de imigrantes italianos que lhe deu muito carinho e uma igreja católica “muito exigente”, para superar a primeira fase do seminário. “Não, eu não passei a tarde com a máfia, nós éramos crianças a brincar na rua, onde havia pessoas perigosas!”, disse, apesar de reconhecer que a base do seu trabalho “vem de lá”.

O vencedor de um Óscar (“The Departed”/”Entre Inimigos”, 2006), de melhor realizador, entre muitos outros prémios, aos quais se junta agora o da Princesa das Astúrias para as Artes, explicou que, quando era jovem, “o crime fazia parte do estilo de vida” daquela época e que o “único retiro” possível era a igreja, onde era acólito e descobriu “a sensação de tranquilidade e de paz”. “Os sonhos existiam na igreja e nos cinemas”, salientou, destacando a importância que a vocação religiosa e a “vida espiritual” tiveram para ele.

Dois dias antes de receber o Prémio Princesa das Astúrias para as Artes como “figura indiscutível do cinema contemporâneo”, Scorsese reconheceu que o seu primeiro grande sucesso de público, “Mean Streets”, foi o que mudou tudo e foi o “melhor momento” da sua vida, a nível profissional.

“Mean Streets” é o seu primeiro filme com Robert De Niro, a terceira longa-metragem de ficção do realizador, concluída em 1973, depois de “I Call First”/”Who’s Knoking at my door” (1967) e de “Boxcar Bertha”/”Uma Mulher da Rua” (1972), dirigidos quando já somava curtas-metragens e documentais como “New York City… Melting Point” (1966) e “Street Scenes” (1970). Martin Scorsese afirmou ter tido muita sorte por ter trabalhado com o ator Robert de Niro, com quem tem uma relação “telepática”, e o “único que realmente conhece” a sua origem, e Leonardo DiCaprio, que lhe tirou “uma nova energia”.

O cineasta também destacou que Francis Ford Coppola era “o pai dos novos realizadores” do seu tempo, “um grupo de rapazes que faziam biscates para conseguir dinheiro para os filmes”, uma geração que ficou conhecida como “The Movie Brats” – a primeira, dedicada ao cinema, que cresceu já com a televisão -, e que envolvia nomes como Scorsese, Steven Spielberg, George Lucas, Paul Schrader, Peter Bogdanovich e o próprio Coppola.

Aos 75 anos de idade, o autor de “Touro Enraivecido” (1980) e “A Idade da Inocência” (1993), também disse que os documentários o ajudaram a contar as histórias de outra forma e a “encontrar uma nova narrativa”.

“O cinema educa em relação às culturas de todo o mundo. É preciso encontrar a alma do ambiente que se cria”, destacou o realizador de filmes como “Tudo Bons rapazes” (1990) e “Gangs de Nova Iorque” (2002).

Sem os seus tradicionais óculos de massa, Scorsese, em Gijón, advertiu que a violência dos filmes de ação nos últimos 25 anos é representada de maneira abstrata e “o impacto não é sentido”. “Isso mantém o público distante e entorpece-o. As notícias são mais violentas”, afirmou.

O realizador recebe na sexta-feira o Prémio Princesa das Astúrias para as Artes, pelas suas dezenas de filmes, que fazem parte da história do cinema, um galardão a que aspirava “há muito tempo” e que representa uma “grande honra” e uma “espécie de sonho”.

Martin Scorsese junta-se, assim, à lista de outros cineastas que também receberam o este prémio, como Francis Ford Coppola (2015), Michael Haneke (2013), Woody Allen (2002) e Luis Garcia Berlanga (1986).

“Silêncio” (2016), “O Lobo de Wall Street” (2013), “A Invenção de Hugo”(2011), “Kundun” (1997), “Casino” (1995), “A Última Tentação de Cristo” (1988), “A Cor do Dinheiro” (1986), “Nova Iorque Fora de Horas” (1985) e “O Rei da Comédia” (1982) são outros filmes no percurso de Scorsese, a par de filmes e séries documentais como as dedicadas ao cinema, à música popular e aos seus heróis, ou a publicações como a revista The New Yorker (“Uma Discussão com 50 Anos”, 2013).