É considerado um dos artistas portugueses contemporâneos de maior êxito. Pelas próprias contas, apresentou 36 exposições individuais e mais de 200 coletivas em 21 anos de percurso. Está representado em dezenas de coleções públicas e privadas – MAAT, Gulbenkian, Museu do Chiado, Museu de Arte Contemporânea de Chicago, Centro Georges Pompidou de Paris. A lista é extensa. A partir desta semana, conhece em Lisboa a maior exposição antológica da sua carreira: “Once in a Lifetime [Repeat]”, com curadoria de Delfim Sardo e inauguração marcada para esta sexta-feira às 22h00 na Culturgest. Irá manter-se até 19 de maio, com entrada gratuita aos domingos e bilhetes a 4 euros nos restantes dias.
Nascido em Lisboa há 43 anos, João Onofre é mais conhecido como autor de vídeos, ou videoarte, mas também trabalha a performance, o desenho ou a fotografia. Começou a expor em 1998 e já representou Portugal na Bienal de Veneza por duas vezes, em 2001 e 2010. Dos seus trabalhos, lê-se na folha de sala da nova exposição, sobressai um interesse pela arte conceptual das décadas de 1960 e 1970, nota-se a importância da circularidade e da repetição, a omnipresença das ideias de finitude, falta, fracasso e erro, e observa-se um diálogo entre cultura “pop” e cultura erudita.
Apesar de o resultado final lhe importar menos do que as ideias de partida, ou que o próprio processo criativo, João Onofre não se considera um artista conceptual, porque “hoje os artistas são quase todos conceptuais” e “fazer a distinção já não será válido”, explicou o criador esta semana, em conversa com Observador. “A partir do fim do século XX, com as novas vanguardas, quase toda a arte interessante tem necessariamente de ser considerada conceptual”, acrescentou.
Na Culturgest vão estar obras produzidas entre 1997 e 2019, permitindo observar uma evolução artística marcada por “cinismo ou ironia pós-moderna nos primeiros anos”, segundo o próprio, mas também pela forte presença do humor. “Esta exposição é um momento muito gratificante, porque olha para diversas fases do meu trabalho e mostra as ligações que se mantiveram ao longo dos anos”, comentou.
Os títulos das peças são todos em inglês, o que lhes abre a porta de outros países e constitui, ao mesmo tempo, uma opção artística.“Não sei porquê, nunca senti necessidade de atribuir nomes portugueses às obras. Virá do facto de ter estudado em Londres, e também, claro, porque isso facilita a circulação internacional”, reconheceu, em referência à pós-graduação na Goldsmiths College de Londres, depois da passagem pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (em 2018 também concluiu um doutoramento em arte contemporânea, pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra).
A pedido do Observador, João Onofre comentou cinco das obras agora expostas, incluindo a novíssima “Untitled (Zoetrope)”, cuja incorporação no acervo da Culturgest pode vir a concretizar-se em breve.
“Untitled”, 1997
(estetoscópios, aço inoxidável, 95 x 9 x 1 cm)
“É capaz de ter sido o primeiro ou o segundo trabalho que fiz”, diz o autor sobre este estetoscópio duplo que pode ser manipulado pelos visitantes da exposição, como uma “escultura utilizável ou participativa”. João Onofre discorda da descrição que surge na folha de sala, segundo a qual se trata de uma “paródia romântica”. Explica o criador: “Aqui procurei explorar a ideia de espaço social entre dois corpos, era uma das linhas de pesquisa que estava a desenvolver no início do meu trabalho. São dois estetoscópios conjuntos e se dois espectadores os utilizarem ao mesmo tempo ouvem um som que mistura os dois batimentos cardíacos.” As referências são alguns trabalhos da artista brasileira Lygia Clark (1920-1988) e sobretudo ‘Perfect Lovers‘, do cubano Félix Gonzalez-Torres (1957-1996).
“Catriona Shaw sings Baldessari sings LeWitt re-edit Like a Virgin extended version”, 2003
(vídeo, cor, som, 14m23s)
O que se vê é uma mulher a cantar “Like a Virgin”, de Madonna, mas com uma letra fora do comum. Como na obra de João Onofre o conceito supera o objeto, importa desde logo entender o conceito. A inspiração é o vídeo criado em 1972 pelo artista americano John Baldessari, onde este cantava 35 enunciados sobre arte contemporânea que Sol LeWitt, outro artista americano, tinha publicado em 1969. Baldessari cantava aqueles enunciados, mas com a melodia de canções populares, como “Strangers in the Night”. “Peguei na estrutura do vídeo do Baldessari e fiz a transposição para uma cantora pop, que canta as mesmas 35 frases, mas com melodia do ‘Like a Virgin’, quase uma pós-produção do vídeo original”, explica João Onofre. A voz é da cantora Catriona Shaw, também conhecida como Miss Le Bomb, e a gravação decorreu no estúdio do artista, em Lisboa, local que considera parte integrante das próprias obras. “Esta canção de Madonna está no imaginário coletivo, por isso o espectador já está um pouco do lado da obra. É um jogo humorado, com alguma ironia. No fundo, sublinha que a distinção entre cultura erudita e cultura popular é uma distinção em crise.”
“Every Gravedigger in (Cemitério Ajuda, Cemitério Alto São João, Cemitério Benfica, Cemit ério Carnide, Cemitério Lumiar, Cemitério Olivais, Cem itério Prazeres)”, 2006
(impressão digital, série de sete, com moldura, 64,8 x 71,8 x 4,5 cm)
“A ideia de representação da morte é uma impossibilidade, à partida. Não vamos fazer o desenho de uma caveira e dizer que aquilo é a morte, porque não é, é um símbolo. Aqui tentei uma aproximação a essa impossibilidade”, explica o artista. “Tentei de alguma forma aceder documentalmente ao tema da finitude.” Em 2004, tinha criado um mapa dos cemitérios públicos de Lisboa e em 2006 publicou esta série fotográfica com os próprios coveiros que lá trabalhavam. “Foram fotografados no local de trabalho, contra um fundo negro, e aparecem com óculos escuros, que são simultaneamente um elemento perturbador, mas também enigmático. Para começar, foi um recurso para vencer a timidez deles. Não queriam aparecer, achavam que não eram dignos de ser fotografados. Ao mesmo tempo, se os olhos são a parte mais exposta do nosso sistema neurológico, usar óculos escuros impõe um distanciamento.” Os coveiros das imagens assumem, assim, apenas apenas o papel profissional, não são pessoas concretas.
“Box Sized Die featuring…”, 2007-2019
(aço, materiais de isolamento acústico, 183 x 183 x 183 cm)
https://vimeo.com/160443545
Um objeto-performance, aparentemente incompreensível. Vai estar frente à Culturgest durante os meses da nova exposição. Que acontece, ao certo? A banda portuense de death metal Holocausto Canibal está dentro de um cubo de aço em que uma das faces funciona como porta. Começam a tocar, a porta é fechada, o interior está insonorizado. Depois vem o silêncio. “Aí entram ideias de silêncio como equivalente de morte, e de som como equivalente de vida, um pouco como as ideias de John Cage. Ele dizia que nunca experimentamos o silêncio, porque mesmo no mais absoluto silêncio ouvimos pelo menos o batimento cardíaco. O silêncio, se o pudéssemos realmente experimentar, seria já a morte”, contextualiza João Onofre. O cubo já esteve em várias cidades europeias, Lyon, Paris, Londres, Barcelona e outras, e normalmente o artista inclui bandas locais do género death metal. Os Holocausto Canibal surgiram depois de uma apresentação da peça na Biblioteca Almeida Garrett e em Serralves, no Porto. O objeto de que se fala é uma réplica exata de uma obra icónica do minimalismo norte-americano, “Die”, de Tony Smith (1912-1980), cujo título fúnebre levantou interrogações ao artista português. “Num exercício especulativo comecei a pensar que no interior poderia estar uma banda e que essa banda teria um reportório mórbido, tal como o título de Tony Smith, e daí as bandas de death metal. Esse foi o ponto de partida, antes das outras camadas de sentido.”
“Untitled (Zoetrope)”, 2018-2019
(vídeo 4K, cor, som)
Repete-se um processo comum em João Onofre. Tal como em “Box Sized Die…” e “Catriona Shaw sings…”, trata-se de uma “performance delegada”. Sendo a performance de João Onofre, não é corpo do artista que a executa, o que neste contexto é visto como sinónimo de autenticidade. Neste caso, executam-na jogadores de equipas masculinas e femininas de râguebi, o coro Gospel Collective e um quarteto de guitarra, baixo, teclas e bateria. O vídeo dura cerca de duas horas e meia. Foi gravado já este ano, num só “take”, no Grande Auditório da Culturgest, com recurso a uma câmara automática controlada à distância, em “travelling” circular. As personagens estão dispostas em círculo e no meio está um microfone. Sempre que um jogador tenta chegar ao microfone para cantar o refrão “I Want to Know What Love Is”, da célebre canção dos Foreigner, é impedido de o fazer e placado por outros jogadores. “Tentam sempre fazer a pergunta e nunca conseguem, é um jogo de impossibilidades. Tem alguma coisa que ver com o fracasso, que é um tema presente noutros trabalhos que fiz.” Na folha de sala lê-se que há pontos de contacto com o documentário “One Plus One/Sympathy for the Devil”, de Jean-Luc Godard, e com “A Arca Russa” de Alexandr Sokurov.