O antigo deputado brasileiro Jean Wyllys, homossexual assumido que desistiu do mandato e se exilou há poucas semanas em Berlim por recear pela vida no Brasil, participou na terça-feira à noite, em Lisboa, na apresentação de um romance de Milton Hatoum e concentrou atenções com um discurso de cadência acelerada, carregado de adjetivos e eloquência de político treinado. Na lapela, uma andorinha com as cores do arco-íris LGBT.
Horas antes, tinha estado numa conferência ao lado do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Além de uma manifestação pouco expressiva convocada pelo Partido Nacional Renovador, em Coimbra tinha enfrentado uma tentativa de agressão, quando um espectador, alegadamente relacionado com aquele partido, quis atirar-lhe um ovo e foi travado por um agente da PSP.
Ao Observador, no fim da sessão literária em Lisboa, que decorreu na Fundação José Saramago, sedeada na Casa dos Bicos, Jean Wyllys disse que antes de chegar a Portugal já sabia da manifestação marcada para Coimbra e que “intuía aquilo que aconteceu”, responsabilizando a imprensa pelo que considera ser o “fomento da extrema-direita”.
As questões de segurança marcaram a passagem pela capital. Pilar del Rio, presidente da Fundação José Saramago, informou pouco antes do início da conferência que era limitado o número de pessoas autorizadas a entrar e que mal os convidados começassem a falar as portas da Casa dos Bicos seriam fechadas. À entrada, encontravam-se dois agentes da PSP e não se verificava qualquer movimento anómalo. Tudo indica que os oradores, incluindo Jean Wyllys, entraram por uma porta das traseiras. Seguramente, foi por aí que Wyllys, com Pilar del Rio a despedir-se dele já perto da meia-noite, testemunhou o Observador. A escoltá-lo estavam pelo menos dois agentes da PSP à paisana, os quais pediram identificação aos jornalistas que quiseram falar com ele.
A conferência teve início pouco depois das nove da noite, com a deputada do Bloco de Esquerda Joana Mortágua na plateia, além de vários escritores portugueses e brasileiros. “Lá fora pensarão que se trata de uma reunião de imoderados, mas estão enganados, aqui apenas estão pessoas corajosas que querem o bem comum”, comentou Pilar del Rio. Perfilavam-se no palco o escritor português Afonso Cruz, Jean Wyllys, Milton Hatoum e Ricardo Viel, assessor de imprensa da Fundação.
Este último informou que Wyllys estará nesta quarta-feira, às 17h00, na Casa do Alentejo, em Lisboa, “para falar da situação dele e da experiência do exílio”. Um aviso de que a sessão seria sobre literatura e não sobre as questões políticas mais óbvias relativas ao ex-deputado. “Pediram-me para não falar de política”, referiu mais tarde Afonso Cruz. Mas a política tornou-se o tema da noite, com a ação do novo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a ser comparada à da Ditadura Militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985.
“A mediocridade triunfou e é hegemónica no governo recém-eleito”, disse Jean Wyllys, que exerceu funções de deputado federal pelo Rio de Janeiro entre 2011 e janeiro último (eleito nas listas do Partido Socialismo e Liberdade, criado por dissidentes do Partido dos Trabalhadores). “Na verdade, nunca saímos do abismo”, acrescentou, classificando a sociedade brasileira como “homofóbica, machista, racista, injusta”.
O romance de Milton Hatoum, A Noite da Espera, editado em Portugal há pouco mais de um mês pela Companhia das Letras, foi descrito pelo intervenientes como “um comentário mordaz, por antecipação, à atual situação política no Brasil”. Passa-se na década de 1970 e inclui uma personagem exilada em Paris. Wyllys falou em “sincronicidade” e disse que encontrou nesta história um reflexo da sua própria vida, das ameaças de morte ao exílio na Alemanha.
“Hoje os progressistas no Brasil sentem-se expatriados na própria pátria. Este governo esconde-se por detrás de uma máscara de democracia, temos uma democracia caricata, e nem quero entrar em detalhes de como estas eleições foram manipuladas por WhatsApp e calúnias”, disse Milton Hatoum, sublinhando que escreveu o novo romance há mais de uma década.
Vencedor do Prémio Portugal Telecom de Literatura em 2006, atual Prémio Oceanos, o escritor brasileiro deu testemunho da polarização na sociedade brasileira, ao explicar que cortou relações com alguns familiares que apoiaram Bolsonaro.
Apesar dessa posição clara, Milton Hatoum resistiu a comparações entre o atual presidente e a Ditadura Militar. “Na ditadura não havia tolerância. Não estamos a viver esse estado de exceção. A miséria e a desigualdade cresceram tanto, muita coisa da nossa desgraça veio da ditadura, que era um regime de terror. Não sei se vamos chegar a isto”, afirmou.
“Para alguns de nós, chegou”, contrapôs Wyllys. “Nasci num bairro miserável, sei muito bem que o regime de terror nunca acabou e está instalado hoje no Brasil”, acrescentou o ex-parlamentar.
“Na Alemanha, não tenho problemas”
Depois da sessão, questionado pelo Observador sobre o que sentiu perante o incidente em Coimbra, utilizou a palavra “tristeza” e classificou os protestantes e o agressor como “pessoas medíocres” que “recorrem à violência porque não suportam argumentos e não são capazes de um debate democrático”. Garantiu que “nada há a temer” pela sua visita a Portugal, porque é “um homem honesto e decente”.
“Um partido político de que não me lembro o nome, de tão obscuro e inexpressivo que é na cena política portuguesa, organizou pela internet protestos contra a minha presença. Vim sem medo de os enfrentar, eles reuniram 12 pessoas contadas e uma delas conseguiu entrar no auditório em Coimbra”, relatou Jean Wyllys. “Durante a minha intervenção, eu, que já estou habituado a fascistas, que sou puta velha, percebi que ele teria intenção de fazer algo contra mim. Vi que meteu a mão numa mala e tirou algo. Cheguei a pensar que seria uma arma, mas felizmente era só um ovo e a segurança foi tão eficiente que conseguiu subir ao palco e deter o ovo”.
Segundo ele, o protesto na Faculdade de Economia de Coimbra “não teve volume de pessoas porque a extrema-direita aqui é caricata e inexpressiva e só encontra espaço na imprensa, que de alguma maneira quer fomentar essa extrema-direita tal como se faz com os bolos de má qualidade, em que se coloca fermento em excesso para poderem crescer”.
Jean Wyllys disse que vai continuar a viver em Berlim e está a preparar uma tese de doutoramento na Alemanha “em parceria” com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Não sei quando regresso ao Brasil, provavelmente só quando saírem as forças hoje hegemónicas que estão no governo. Estou sob ameaça de morte, foi por isso que saí do Brasil”, reforçou. Essas ameaças, confirmadas há alguns meses pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), têm origem em “grupos de sicários, de assassinos de aluguer ligados a milícias”, segundo o próprio declarou à imprensa brasileira.
“Não tenho vocação para mártir, há inclusive uma dimensão de fanatismo no mártir, por isso, optei pelo exílio”, explicou em Lisboa.
O também escritor, professor universitário de comunicação e ativista de direitos LGBT – em tempos descrito pela “Folha de S. Paulo” como “o primeiro parlamentar assumidamente gay a encampar a agenda LGBT no Congresso Nacional” – garantiu não temer que as ameaças o persigam até à Europa. “Na Alemanha não tenho segurança, não tenho problemas. Creio que este incidente aconteceu em Portugal porque a língua é comum e há imbecis que mantêm diálogo com os fascistas brasileiros. Noutro lugar da Europa, uma situação destas não é passível de acontecer.”
Ao intervir na Fundação José Saramago, descreveu-se como “elemento queer, estranho, na política” e emocionou-se ao falar da mãe, por sugestão das personagens do livro de Hatoum. “Estou fisicamente ausente da minha mãe e não sei quando a vou reencontrar, porque me autoexilei. Mas estive ausente da minha mãe desde sempre. Essa ausência tem a ver com a minha homossexualidade. Com um filho homossexual, antes de ele contar, de sair do armário, acontece uma rutura com essa mulher, uma ferida que vai marcar para sempre a vida da pessoa”, confessou.