Título: As Trevas e Outros Contos
Autor: Leonid Andréev (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)
Editora: Antígona
Páginas: 286
Preço: 16€

A coletânea de cinco contos do escritor russo foi publicado em janeiro de 2019

Leonid Andréev nunca teve medo do escuro. Associado às correntes realistas e simbolista, este desconhecido autor russo, depressivo e suicida, criador de personagens marcantes e densas, escreveu histórias onde o perigo da morte estava sempre presente e a loucura prestes a bater à porta. Algumas delas foram recentemente publicadas pela editora Antígona, no volume As Trevas e Outros Contos, um dos poucos disponíveis em Portugal deste escritor que chegou a ser um dos mais aclamados do seu país — até que foi injustamente arrancado do seu pedestal pelos filhos da revolução que apoiou.

Leonid Nikolaevich Andréev nasceu a 9 de agosto de 1871, em Orel. O mais velho de seis irmãos, mostrou desde cedo ter uma imaginação fértil e um profundo interesse na literatura (em criança, tentou fugir para a América depois de descobrir o escritor James Fenimore Cooper). Foi também em pequeno que o lado mais negro da sua personalidade se começou a evidenciar e os primeiros episódios depressivos começaram a surgir.

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Estes foram frequentes durante toda a sua vida, e eram geralmente seguidos de períodos de grande produção intelectual. Prisioneiro do álcool, Andréev tentou em vários momentos suicidar-se. O escritor Maxim Gorki, três anos mais velho do que ele e seu amigo próximo, costumava contar que, no seu primeiro encontro, Andréev lhe tinha relatado que tinha testado os seus nervos ao atirar-se para debaixo de um comboio em andamento. “Havia algo selvagem nele, uma necessidade de testar o seu destino, de tocar nos limites da experiência humana como acabaria por fazer na literatura”, escreveu perspicazmente a sua neta, Olga Carlisle, num artigo publicado no The New York Times em 1987.

Licenciado em direito pela Universidade de Moscovo, Andréev publicou o primeiro conto pouco depois de acabar o curso (em 1897), numa altura em que trabalhava como advogado e repórter criminal no Mensageiro de Moscovo. “Bargamot e Garaska” (1898), inspirado na vida em Orel, atraiu a atenção do escritor Maxim Gorki, que aconselhou o seu autor a dedicar-se apenas à literatura. E ele assim fez: abandonou a carreira como advogado, começou a participar nas “Quartas-feiras” de Moscovo, onde jovens escritores realistas com ideias liberais partilhavam e criticam trabalhos, e a escrever aquela que viria a ser a sua primeira coletânea de contos. O livro, publicado em 1901, foi bem recebido.

De 1901 a 1905, data em que se estreou como dramaturgo, Andréev publicou vários contos, de temas diferenças mas sempre com uma profunda análise psicológica das personagens. Entre estes contam-se os polémicos “O Abismo” e “No Nevoeiro” (1902), que causaram escândalo pelo tratamento franco da sexualidade, um tema tabu na sociedade russa de então. Entre acusações de imoralidade (em parte proferidas pela mulher de Leon Tolstói), Andréev tornou-se numa celebridade, acumulando fama e dinheiro. Até que, pouco depois da Revolução de 1905, de que tomou partido, foi atirado para dentro de uma cadeia moscovita. Apesar das ideias liberais, o escritor nunca pertenceu a nenhum partido.

Leonid Andréev abandonou a Rússia em 1905, vivendo primeiro na Alemanha e depois na Finlândia, onde se tornou publicamente crítico dos bolcheviques. Morreu de ataque cardíaco a 12 de setembro de 1919, aos 48 anos, pobre e ignorado, enquanto assistia ao colapso do seu país, arrasado pela guerra e pela fome. A sua obra foi censurada pelas autoridades soviéticas até ao final dos anos 50 e o seu nome, outrora sinónimo de uma época dourada na literatura russa de início do século XX, caiu no esquecimento.

Os contos que deixou parecem conter a mesma obsessão pela morte que tinha em vida. Nos cinco reunidos pela Antígona, esta está sempre presente, sempre à espreita. A primeira história, “As Trevas”, que dá título ao volume, fala de um jovem revolucionário que tem planos para se fazer explodir mas que se vê subitamente confrontado pela possibilidade de um amor aparentemente abnegado e verdadeira. Este é, juntamente com “O Governador”, também presente na coletânea da editora portuguesa, um dos vários contos escritos por Andréev que refletem a atmosfera vivida na sequência da Revolução de 1905.

“O Governador” fala de um homem que sela o seu destino ao ordenar a execução de uma multidão que se manifestava em frente à varanda de sua casa. Sentido o peso das 47 vítimas (incluindo nove mulheres e três crianças) pelas quais foi responsável e consciente de que a morte chegará mais cedo ou mais tarde, o governador entrega-se à monotonia dos dias, chegando ao ponto de recusar uma escolta policial — ele que andava sempre acompanhado por guardas. Além da morte, que paira sobre Piotr Ilitch como um fantasma, parece existir também uma inevitabilidade, um destino do qual o governador não consegue fugir. Este é outro dos temas transversais aos cinco contos de As Trevas, onde as personagens principais são todas homens trágicos. Jesus, que surge na história “Judas Iscariotes”, é um exemplo disso. O seu destino estava há muito traçado.

“No Nevoeiro” e “Os Fantasmas”, os últimos dois contos do livro, fogem à aura revolucionária. O primeiro, que deu origem a uma polémica na época da sua publicação, conta a história de um jovem, símbolo de uma sociedade hipócrita, que repele a sexualidade mas que procura o prazer em segredo, entre prostitutas. O segundo fala de um funcionário público que, ao fim de mais de 30 anos de trabalho, enlouquece. O seu chefe oferece-lhe a reforma antecipada, e os amigos atiram-no para um hospício onde vive muito feliz entre os doidos. A morte não chega para ele, mas assiste a ela quando um dos malucos morre, de noite, com medo.

O medo, a loucura, a violência, a hipocrisia e a morte, temas tratados por Leonid Andréev nos contos reunidos pela Antígona, resumem o que há de mais negro na condição humana. No entanto, as personagens de Andréev não são monstros porque, no meio da escuridão, o autor lembrou-se de deixar a janela aberta para que a luz pudesse entrar. O bombista, o governador ou o apóstolo feio, cuja análise psicológica tornam o escritor num justo herdeiro de Dostoiévski, que admirava, não são verdadeiramente bons mas também não são verdadeiramente maus. São verdadeiros. Camus disse um dia que “não existe luz sem sombra”. Também é importante “conhecer a noite”.