Outrora residência de uma nobre família, o Palacete Viscondes de Valmor acaba de reabrir portas como mais recente acomodação de uma cadeia hoteleira portuguesa. Com oito quartos, depois de reparações que duraram cerca de um ano, a Dear Lisbon Valmor Palace é o novo inquilino do edifício erguido há 113 anos e que, no ano em que foi construído, recebeu um Prémio Valmor. O palacete continua a ser propriedade da família — depois do Clube dos Empresários, que ali funcionou durante 24 anos, a Dear Hotels é o segundo inquilino dos Valmor.

O exterior do palacete, depois de desbastados os arbustos e retiradas as árvores que tapavam a fachada © Dear Lisbon

João Veiga, de 29 anos, é o empreendedor por detrás do projeto. Em 2014, abriu a primeira guest house, na zona de Santa Catarina. O objetivo sempre foi fazer com que os hóspedes se sentissem em casa, daí a preferências por unidades de pequenas dimensões. Logo a seguir, vem o gosto pela recuperação de espaços com história. Falamos deste, mas também do Grémio Literário e do número 31 do Largo Rafael Bordalo Pinheiro, ambos no Chiado. Aqui, a missão foi exigente. Não que tenham sido realizadas intervenções de fundo, mas limpar o jardim das traseiras, substituir vidros e fazer pequenas reparações devolveu à moradia o brilho de outros tempos.

E se ela o tem. A fachada, projetada pelo arquiteto Miguel Ventura Terra, à semelhança do resto do edifício, é inconfundível. Os frisos em azulejo na fachada, as colunas de capitel jónico e as vistosas bow windows continuam a ser os marcos arquitetónicos do cruzamento da Avenida da República com a Avenida Visconde de Valmor. No interior, os tesouros permanecem intocados, como é o caso dos frescos que decoram os tetos e paredes de duas divisões do primeiros andar, bem como os relevos nos tetos da sala, ainda no piso térreo.

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O átrio do palacete, agora com um balcão de check-in © Dear Lisbon

“A perfeição é inimiga dos espaços com interesse” — afirma João Veiga ao Observador, uma espécie de lema que o levou a assumir os detalhes que denunciam a passagem do tempo. Mas nem só de estuque estalado e de madeiras a descascar é feita a história deste palacete. Para trás ficou um retrato do próprio Ventura Terra, bem como quadros de Alfredo Guedes e António Joaquim de Oliveira, irmão e cunhado do visconde, respetivamente. Agora, estão perfeitamente fundidos na decoração, tal como os quatro bustos da Viúva Lamego que representam as estações do ano.

Uma noite aqui pode ir dos 150 aos 300 euros. Com a chegada do verão, a proposta sobe de tom. A Dear Lisbon Valmor Palace prepara a abertura de um restaurante, conceito que terá lugar na cave, espaço ainda por explorar, e que irá marcar uma nova alternativa para “almoçar, jantar ou beber um copo”, segundo explica o jovem empresário. Depois de seis guest houses em Lisboa, a empresa vai expandir-se para o Alentejo. Para 2020, prevê-se a abertura da primeira unidade de turismo rural.

Viscondes, empresários e uma brigada da ASAE: a história do palacete

A história do Palacete Viscondes de Valmor está ligada à do prémio homónimo, embora a sua construção seja posterior à morte de Fausto de Queirós Guedes, segundo Visconde de Valmor e homem que, em testamento, lançou as bases para a criação do galardão. Obra do arquiteto Miguel Ventura Terra, o dito palacete terá sido construído entre 1905 e 1906, ano em que arrecadou o prémio instituído em 1898 e atribuído pela primeira vez em 1902 — nesse ano, sem menções honrosas, foi distinguido o Palácio Lima Mayer, na Avenida da Liberdade.

O visconde, título que herdou do tio, fez carreira na política e na diplomacia. Casou duas vezes — com D. Joaquina Cardoso, de quem enviuvou em 1859, e com D. Josefina Clarisse de Oliveira, por sua vez viúva de Ângelo Francisco Carneiro, segundo Visconde de Loures. Morre em dezembro de 1898, em Paris, instituindo, em testamento, um prémio anual destinado à melhor edificação da cidade de Lisboa. No mesmo documento, manifestou ainda vontade de subsidiar os estudos de artistas portugueses fora do país.

O Palacete Viscondes de Valmor na primeira década do século XX, próximo do ano da sua construção: 1906 © Arquivo Municipal de Lisboa

O palacete foi então construído para ser a residência da viúva, a Viscondessa de Valmor. Em 1906, foi uma dos primeiras edificações da atual Avenida da República, zona limítrofe do centro da cidade e que dava acesso aos subúrbios. A bem da verdade, a própria artéria tinha outro nome. Até 1897 foi Avenida Picoas. Com os planos de extensão da cidade, encabeçados por Frederico Ressano Garcia, acabou por ganhar o nome do referido engenheiro. Em 1910, com o fim da monarquia, assume a nomenclatura que mantém até hoje. A avenida foi sendo gradualmente edificada. O último quarteirão data de 1934.

De volta ao número 38, o “recorte do edifício, estruturado ritmicamente em três planos facetados”, como se pode ler no site da Direção-Geral do Património Cultural, valeu-lhe o Prémio Valmor, deliberado por três jurados. O arquiteto Miguel Ventura Terra — que com a Casa Ventura Terra já tinha conquistado o mesmo prémio em 1903 — não foi o único a brilhar. As cantarias estiveram a cargo de Pedro Pardal Monteiro e as esculturas encomendadas a Jorge Pereira.

Primeira página da edição de junho de 1909 da revista A Architectura Portugueza © Biblioteca Keil do Amaral

Embora os atuais descendentes recordem a infância passada na casa, um artigo publicado na revista A Architectura Portugueza, em junho 1909, refere que o palacete terá sido construído para alugar (ou para “rendimento”, como é referido no português de há 110 anos), afirmando que, à data, a Viscondessa não morava no edifício recém-construído. “Pena é que a Ex.ma Sr.a Viscondessa não fizesse d’ella habitação propria […]”, pode ler-se na publicação da época.

A casa foi considerada Imóvel de Interesse Público em 1977 e, em 1983, foi alugada para se tornar na sede do Clube dos Empresários, continuando na posse da família. De acesso restrito, o clube ficou na memória lisboeta. Por lá passaram inúmeros empresários e dirigentes de empresas, nacionais e internacionais. João Veiga, o atual arrendatário, teve oportunidade de comprová-lo, quando na gaveta de um móvel deixado para trás encontrou vários cartões-de-visita de personalidades ligadas ao mundo dos negócios. Lá dentro, existiam zonas de bar, pelo menos uma sala reservada a jogos de cartas, outra ao clássico convívio intermediado por charutos e um restaurante.

Uma das salas pintadas foi convertida em casa de banho © Dear Lisbon

Em março de 2007, este último foi encerrado pela ASAE, após uma inspeção resultante de uma denúncia anónima. Além de alimentos impróprios para conservação, a brigada deparou-se ainda com condições de limpeza pouco satisfatórias. O restaurante reabriu passados dois dias, mas voltou a encerrar pouco tempo depois. A casa ficou desocupada e a sua deterioração atraiu as atenções. Em julho do ano passado, o Fórum Cidadania Lx e a Casa Ventura Terra escreveram uma carta ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, referindo os “sinais preocupantes de começo de degradação física, com várias janelas com vidros partidos”. No mesmo texto, era pedido à presidência que instasse “o proprietário a obras de conservação imediatas”.

Entre 2013 e 2014, o palacete terá sido posto à venda, pelo que veio a público a possibilidade de se instalar uma embaixada no número 38 da Avenida da República. O cenário não veio a concretizar-se. A proposta de arrendamento da Dear Hotels, com a promessa de algumas melhorias no estado do edifício, convenceu os proprietários, descendentes dos Viscondes de Valmor. Os trabalhos decorreram nos últimos meses, dando origem a especulação. A sexta unidade da Dear Lisbon está em soft opening há cerca de três semanas e só no verão é que o projeto deverá estar concluído, com um restaurante e um bar abertos ao público.

Artigo atualizado no dia 8 de abril, às 17h12.