A passagem de Bruno de Carvalho pela presidência do Sporting trouxe o regresso do clube de Alvalade aos títulos, com a vitória na final da Taça de Portugal de 2014/15 à cabeça, já que nessa altura os leões não somavam qualquer troféu ao seu palmarés desde 2008. A saída atribulada de Bruno de Carvalho da liderança do Sporting, num período turbulento que culminou com a destituição do presidente e teve como consequência um ato eleitoral que elegeu Frederico Varandas como seu sucessor, deixou uma névoa sobre a janela temporal de cinco anos em que o empresário tomou conta dos verde e brancos.
Mais de um mês depois de Varandas explicar aquilo a que chamou “a verdade sobre o Estado da Nação” e revelar os detalhes preliminares da auditoria forense feita à gestão de Bruno de Carvalho, os responsáveis da Bakertilly, a empresa que realizou a análise, já entregaram o produto final à atual direção do clube. De forma imediata, a auditoria já teve consequências: a direção liderada por Frederico Varandas entregou à Polícia Judiciária o documento final e o Correio da Manhã indica esta quarta-feira que Bruno de Carvalho está a ser investigado quanto a 2,09 milhões de euros gastos pelo Sporting enquanto era presidente. O jornal Record teve acesso ao relatório final da auditoria e revelou vários pontos destacados pela Bakertilly.
Em comunicado, o Sporting garante que “tomou a iniciativa” de entregar o relatório de auditoria da Bakertilly “às entidades de investigação nacional, ao Conselho Fiscal e Disciplinar do Clube” e que pediu ao Departamento de Sócios que o relatório esteja disponível para consulta “a todos os sócios com quotas em dia, tal como aconteceu no passado, no centro de atendimento a partir desta 6ª feira”.
Sporting. Bruno de Carvalho investigado por despesas suspeitas num novo processo
O contrato de Acuña e os direitos que o Sporting não exerceu
Uma das situações que mais atenção mereceu por parte dos responsáveis pela auditoria foi a transferência e o contrato de Marcos Acuña. O internacional argentino chegou a Alvalade em julho de 2017, vindo do Racing Avellaneda, e custou, de forma oficial, 6,285 milhões de euros aos cofres leoninos. A este contrato inicial, porém, acrescenta-se um outro que diz respeito à preferência de três jogadores do Racing (no valor de 1,65 milhões de euros) e à realização de um jogo particular (mais 1,65 milhões de euros), o que totaliza um valor final de 9,585 milhões de euros.
Ora, segundo a auditoria a que o Record teve acesso, o Sporting nunca exerceu estas opções: nem o direito de preferência em relação a jogadores, nem o encontro particular. A Bakertilly indica que não conseguiu obter “esclarecimentos suficientes sobre a natureza e o objetivo deste contrato (de acordo com o departamento jurídico este contrato foi negociado direta e exclusivamente pela administração)” e acrescenta que não tem “evidência de que a Sporting SAD tenha exercido estes direitos, nem os motivos pelos quais os não exercem”. Além disso, documento indica que o Racing Avellaneda “ainda não faturou” e que o Sporting “ainda não pagou” 1,65 milhões de euros, ou seja, uma dessas cláusulas adicionais do contrato de Acuña. O Record ressalva, porém, que a atual direção leonina já contactou o clube argentino com a intenção de negociar o pagamento dessa última prestação.
A Bakertilly sublinha ainda que Acuña chegou a Alvalade para ser de forma imediata o segundo jogador mais bem pago do plantel, ao auferir 1,547 milhões de euros brutos por época: um valor só suplantado por Bas Dost, que ganhava 3,4 milhões por temporada. A auditoria que analisou os atos de gestão do Sporting desde 2013 confirma ainda que o Zenit esteve mesmo muito perto de levar o internacional argentino no mais recente mercado de inverno mas ficou a dois milhões dos 20 exigidos pela direção do Sporting.
O salário de Montero e a comissão de Costa Aguiar
Fredy Montero regressou ao Sporting em janeiro de 2018 e assinou contrato até junho de 2019 mas acabou por sair no passado mês de fevereiro para os canadianos do Vancouver Whitecaps. A auditoria agora finalizada explica que o avançado colombiano iria receber 2,9 milhões de euros apenas por esta temporada e que, mesmo só entre fevereiro e junho de 2018, auferiu 1,2 milhões: quase o dobro daquilo que ganhou durante a primeira passagem pelo Sporting, em que representou o clube durante dois anos e meio e recebeu, ao todo, 633 mil euros.
“Não obtivemos explicações suficientes que sustentem o racional que justifica os termos contratuais do segundo contrato, ou seja, um aumento tão grande na sua remuneração”, afirma a Bakertilly. Feitas as contas, a verdade é que Montero regressou ao Sporting para ganhar dez vezes mais do que aquilo que ganhava quando deixou Alvalade rumo aos chineses do Tianjin Teda. A auditoria introduz ainda dois novos protagonistas no negócio: tanto a agência de jogadores Proeleven como o agente Helmuth Wennin.
No que diz respeito ao primeiro, o Sporting pagou 400 mil euros à Proeleven com o “objetivo desta aconselhar na estratégia negocial a adotar com Montero”, ou seja, com a intenção de que a empresa ajudasse o clube a prolongar o contrato do colombiano por mais uma ou duas temporadas (neste caso, 2019/20 e 2020/21). No dia seguinte ao pagamento desse valor, a SAD leonina conseguiu mesmo o direito de estender o vínculo contratual até 2020/21 — caso o Sporting garantisse uma “retribuição anual de 1,3 milhões de euros” ao avançado. Já no que toca a Helmuth Wennin, os leões terão pago 600 mil euros à Colombiagol para que esta levasse o Tianjin Teda a transferir Montero: ora, quem representou a Colombiagol foi presidente Wennin, agente do avançado colombiano. “Um empresário desportivo só pode agir em nome e por conta de uma das partes da relação contratual”, recorda a Bakertilly.
A auditoria faz ainda uma menção à transferência de Bruno César do Estoril para o Sporting em 2015. O brasileiro que já tinha representado o Benfica chegou a custo zero mas o clube de Alvalade pagou uma comissão de 1,3 milhões de euros ao intermediário Costa Aguiar. A Bakertilly sublinha que não existe “evidência se esta entidade é ou foi em algum momento representante do jogador”.
Octávio, Mihajlovic, Azbe Jug e os irmãos Ruiz
A auditoria detalha ainda vários contratos assinados durante o período temporal em que Bruno de Carvalho esteve na liderança do clube. O vínculo de Octávio Machado ao Sporting, por exemplo, levantou algumas dúvidas, já que a Bakertilly sublinhou que “esta situação pode originar uma contingência fiscal em sede de IRS e Segurança Social”. Quanto a Sinisa Mihajlovic, treinador sérvio que foi ainda contratado por Bruno de Carvalho para substituir Jorge Jesus e posteriormente despedido por Frederico Varandas, o Sporting comprometeu-se a pagar 3,7 milhões de euros brutos ao longo de três temporadas. O processo, recorde-se, ainda está a ser julgado no Tribunal Arbitral do Desporto, na Suíça, já que Mihajlovic exige uma recompensação ao clube português.
A Bakertilly descobriu ainda que Azbe Jug, o guarda-redes esloveno que chegou ao Sporting em 2016 e representa atualmente o Fortuna Sittard da Holanda, foi o jogador que mais dinheiro custou aos leões por jogo. Jug esteve em Alvalade durante três temporadas, só jogou uma vez (contra o Arouca, para a Taça da Liga) e por isso a SAD pagou 480 mil euros por esse encontro. A auditoria mergulha também nas transferências dos irmãos argentinos Alan e Federico Ruiz e concluiu que o segundo só veio para o Sporting “por solicitação” do primeiro, já que os leões não tinham “qualquer interesse” em Federico. Atualmente, Alan está emprestado ao Aldosivi da Argentina e Federico, que nunca jogou pela equipa principal, está cedido ao Sintrense.
O milhão perdido no scouting
Desde 2013 e até Bruno de Carvalho sair da liderança do clube e da SAD, o Sporting gastou mais de três milhões de euros com o departamento de scouting. Ora, segundo a auditoria forense agora terminada, não há rasto de mais de um milhão desse valor. “A Sporting SAD não obteve os respetivos relatórios de scouting, no total de cerca de 1,025 milhões. Destes relatórios, não foram ainda pagos gastos no total de cerca de 65 mil euros”, explica a Bakertilly, que acrescenta ainda que o valor despendido pelos leões neste departamento nem sempre era direcionado para serviços de scouting, mas também para ações de “outra natureza” — por exemplo, 250 mil euros da transferência de Adrien Silva para o Leicester durante o verão de 2017.
Os auditores destacam ainda algumas “deficiências” no interior do departamento, como “ausência de contratos, contratos não assinados, ausência de relatórios de scouting, relatórios informais, mão assinados e não identificados/detalhados, bem como gastos de outra natureza classificados como scouting, etc”. Importante sublinhar ainda a quase inexistente taxa de aproveitamento dos cerca de 680 nomes referenciados pelo scouting desde 2013: desses, só três acabaram por ser contratados, ou seja, algo como 0,4%.
A Bakertilly revela ainda a existência de uma relação entre o Sporting e a Soccer Future, mantida através de um contrato assinado em 2014 e no valor de 36 mil euros e um outro formalizado em 2018 e com um valor anual de 180 mil euros. Sobre este segundo vínculo, os auditores terão tido acesso a um documento que foi entregue por Augusto Inácio ao Sporting, já que o atual treinador do Desp. Aves era “o interlocutor que solicitava o pagamento das respetivas faturas” da Soccer Future. A relação entre Inácio e esta empresa “pode ser posta em causa”, sentencia a Bakertilly.
Jorge Jesus ganhou quase o dobro do que Sérgio Conceição e Rui Vitória receberam juntos no último ano
Jorge Jesus e a respetiva equipa técnica chegaram ao Sporting durante o verão de 2015 e a grande aposta de Bruno de Carvalho custou cerca de 25 milhões de euros. O treinador principal, porém, amealhou a grande fatia da totalidade do bolo e terá arrecadado cerca de 20 milhões de euros durante as três temporadas em que orientou o Sporting.
Contas feitas, Jesus recebeu apenas no último ano quase o dobro daquilo que Sérgio Conceição e Rui Vitória — ambos campeões nacionais em anos recentes com os respetivos clubes — ganharam juntos. Jorge Jesus, em três temporadas, conquistou uma Supertaça Cândido de Oliveira e uma Taça da Liga. Já em comparação com Leonardo Jardim e Marco Silva, os outros dois treinadores da era Bruno de Carvalho, a discrepância é abismal: o madeirense, atualmente a orientar o Mónaco, ganhou 844 mil euros em Alvalade e Marco Silva, agora no Everton, recebeu 872 mil euros.
Dinheiro vivo em Alvalade, SAD credora das claques e os problemas com o Fisco
A auditoria da Bakertilly revela também que o Sporting chegou a ter mais de um milhão de euros em dinheiro vivo em Alvalade. “O Sporting manteve por períodos muito alargados montantes de numerário significativos sem serem depositados em bancos”, escreveram os auditores no documento final, acrescentando que esta prática “dificulta significativamente o controlo de tesouraria e proporciona o seu uso indevido”.
A Bakertilly explica ainda que a SAD leonina é credora das claques em 158 mil euros desde junho do ano passado e alerta para o risco de o Fisco não olhar com bons olhos para os valores pagos em direitos de imagem como parte do IRS e da Segurança Social relativos às transferências de Schelotto, Bryan Ruiz, Jonathan Silva, Naldo, Montero e Heldon.