Se os fatos dos toureiros não fossem tão bonitos ele talvez tivesse sido futebolista, como o seu companheiro de escola e vizinho do bairro da Mafalala, Eusébio da Silva Ferreira. Mas Ricardo Chibanga não conseguia tirar os olhos daqueles homens que se vestiam tão elegantemente para, diante dos touros, enfrentarem a morte. Faltava à escola para os poder ver. O seu gosto pelas touradas levou-o a fazer pequenos trabalhos na Monumental de Lourenço Marques. Em troca assistia gratuitamente às corridas.

No ano de 1962, o improvável aconteceu: Ricardo Chibanga foi convidado a vir para a então metrópole com o objectivo de se tornar estrela desses mesmos cartazes e panfletos das corridas de touros que ele distribuía pelas ruas de Lourenço Marques.

Perceber como é que isso aconteceu obriga a recuar às corridas levadas a cabo por Diamantino Viseu e Manuel dos Santos em Lourenço Marques, no ano de 1962. Ricardo Chibanga estava lá, a vê-los tourear. Ficou fascinado, muito particularmente com Manuel dos Santos.

Mas enquanto o jovem se maravilhava com a arte dos toureiros e lhes tentava copiar os gestos, um dos acompanhantes de Manuel dos Santos intuiu que Chibanga poderia ser mais do que um aficionado. Tratava-se de Alfredo Ovelha, uma personalidade do mundo tauromáquico em cuja vida se cruzaram boémia, aventura, negócios e muita ousadia. Foi em parte graças a Alfredo Ovelha que, aos 18 anos, Ricardo Chibanga deixou Moçambique. Veio por três meses.

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Chibanga foi viver para a Golegã, onde Manuel dos Santos vivia e onde existiam condições para a aprendizagem do toureio.

O estilo Chibanga

Os três meses passaram e Chibanga não regressou a Moçambique. Ia ser toureiro. Quatro anos depois, em 1966, já Ricardo Chibanga era aplaudido por milhares de pessoas. Tratava-se das célebres touradas que tiveram lugar em Macau, no Verão de 1966. A 1 de Agosto desse ano houve tourada em Macau pela primeira vez. A 5, 6, 10, 12, 13, 17, 19 e 20 as faenas repetiram-se. A lotação da praça de bambu esgotava sempre. O público asiático reagia apaixonadamente às lides, sobretudo à de Chibanga, que terminava ajoelhado e de costas perante o touro. Nesse momento, pelas bancadas explodia um grito de admiração.

(Imagem FarpasBlogue)

O mesmo grito que se vai ouvir quando, três anos depois, em 1969, quando a empresa de Manuel dos Santos organizou touradas em Jacarta, na Indonésia.

Com uma assistência de mais de cem mil pessoas – o que fez dela a tourada que contou com maior assistência de público em todo o mundo – as bancadas de um estádio de Jacarta encheram-se entre 22 de Abril e 7 de Maio de 1969 para ver corrida à portuguesa.

Mais uma vez, Chibanga arrebatou a assistência. O impossível acontecia diante do olhar atónito dos milhares de pessoas que enchiam o estádio: ele vira as costas ao touro e ajoelha. O touro não investe. Chibanga parecia dominar o touro. E contudo, como ele mesmo dirá: “Sempre senti medo. Não há um único toureiro que não sinta medo.”

Da Maestranza à praça desmontável

15 de Agosto de 1971: Ricardo Chibanga, apadrinhado por António Bienvenida e com o testemunho do matador sevilhano Rafael Torres, torna-se matador na Real Maestranza de Sevilha. Quatro dias depois, a 19, Chibanga toureia na Praça do Campo Pequeno, em Lisboa. Agora é ele quem veste aqueles fatos maravilhosos que uma década antes o tinham maravilhado na Monumental de Moçambique.

Vão chamar-lhe “El Africano”. Vai ser apresentado invariavelmente como “o primeiro toureiro negro”, “o único matador africano” — ou “negrito, matador”, como o apelidou Picasso, que o quis conhecer depois de o ver tourear no sul de França.

Vai sofrer colhidas, ser cantado em paso doble e ritmos africanos onde “xigubo” deixa de ser uma dança tradicional de Moçambique para se tornar sinónimo de faena. Em 1972 regressa a Moçambique: é levado em ombros. Triunfa no México.

(Imagem retirada de FarpasBlogue)

Chibanga não falava muito. Era contido na expressão dos sentimentos, mas chorou numa reportagem da RTP ao ver a Monumental de Lourenço Marques degradada.

Há contudo duas certezas no seu discurso que se devem reter. Uma, porque é transversal aos toureiros e ajuda a perceber o mistério da tauromaquia: “Sempre senti medo. Não há um único toureiro que não sinta medo.” A outra certeza prende-se com ele mesmo, Chibanga: nunca pensou desistir das touradas. E por isso, quando se retirou das lides, quando arrumou aqueles trajes que tanto o tinham fascinado, não deixou os touros. E, mais uma vez, protagonizou algo de inesperado: Chibanga tornou-se proprietário de uma praça de touros desmontável e com ela correu o país.

“Vai sempre haver corridas de toiros”, declarou há poucos anos perante as pressões crescentes em torno das touradas. O “único matador de touros negro”, tornado muito provavelmente no único proprietário negro de uma praça de touros, não era homem para mudar de ideias só porque alguns lhe estranhavam as escolhas.