O mundo é hostil, certo. Mas há sempre sítios nos quais podemos confiar. O café central aberto no dia de Natal. O pequeno comerciante que vende álcool depois da meia-noite. A papelaria que nos guarda o jornal antes que esgote. E, claro, o Lounge. No número 1 da Rua da Moeda, no Cais do Sodré, das 22h às 04h de segunda a domingo, o Lounge está lá para nós. E isso não é para qualquer um. Mais: está lá há 20 anos. Data que será assinalada este sábado, dia 4 de Maio, das 14h (percebe-se que duas décadas fazem alargar o horário) às 04h, com concertos, sets, bandas e DJs, copos, claro, tudo a que temos direito. Como já se tornou hábito dizer: devagar se vai ao Lounge.

“Costumo dizer que os bares são como os animais: nascem uns dentro dos outros”, chuta Mike Mwaduma, sócio-gerente do Lounge, que algures entre 1998 e 1999, como sempre se faz, estava no bar de um amigo em Hamburgo a beber copos e a conspirar contra o universo e a sua malvadez, ou a congeminar como torná-lo um sítio mais suportável. E eureka. “Decidimos que devíamos era fazer um bar em Lisboa, a condição essencial era que fosse bastante perto e suficientemente longe do Bairro Alto. Acabei por encontrar o sítio perfeito em São Paulo entre o Bairro Alto e o Tejo e a dois passos do Cais do Sodré, não será coincidência o facto da ideia ter nascido no Heinz Karmers Tanzcafé em St. Pauli,  bairro de reputada ‘má fama’ com uma longa tradição entre boémios, marujos e foliões a dois passos do Elba… Dois meses depois o Georg Pfaff estava em Lisboa e umas semanas depois estávamos equipados com fato-macaco e martelo pneumático para transformar uma antiga oficina de motores de barcos no Lounge”, conta.

Os concertos de nomes e bandas fora do mainstream são uma das marcas do Lounge

Era um outro tempo, um outro Cais do Sodré, uma outra Lisboa. O chão não estava pintado de rosa, não havia a parafernália de restaurantes e bares e gelatarias, não havia esta afluência desmedida de pessoas. Mário Valente, programador e DJ residente da casa, lembra-se do quão longe parecia a travessia que se fazia da porta do Lounge à atual Rua Rosa, lembra-se de não existir grandes espaços com programação cultural além da ZDB – que estava a arrancar –, do Johnny Guitar – que fechou um par de anos antes do Lounge abrir e, logicamente, havia o Coliseu dos Recreios, a Aula Magna, as grandes salas de concertos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“A ideia de bar de entrada livre que ‘por acaso’ também vai oferecer um concerto gratuito era coisa que estava por aparecer em 1999. Não vou dizer que fomos os autores dessa ideia peregrina em Lisboa – até porque ter uma programação regular de concertos não foi propriamente uma coisa planeada –, mas a verdade é que ajudámos a criar um circuito que não existia, e isso foi especialmente importante para o desenvolvimento do boom de novas bandas locais, porque sem esse circuito elas não poderiam mostrar o seu trabalho de forma regular”, explica Mário Valente.

Exato. Nós bem avisámos, estimado leitor, que podemos contar com o Lounge. É que além de estar aberto todos os dias, este bar é de entrada livre e ainda oferece concertos e sets sem cobrar mais por isso. E tudo isto com um selo de qualidade muito nítido na programação. Como é que então se consegue o melhor destes dois mundos?

A aparição surpresa de DJs-estrela é uma dos ingredientes da história do Lounge

“Com muito boa vontade de ambas as partes. A própria entrada livre acaba por filtrar o tipo de propostas que podemos apresentar, uma vez que deixámos logo de lado voos demasiado altos que sabemos que não vale a pena estar a cobiçar. Agarramos por isso um circuito mais pequeno de bandas que vamos mantendo debaixo de olho, bandas internacionais que ainda estão a fazer tours em salas com o tipo de dimensão do Lounge. Para muitas dessas bandas não rende estar a tocar em espaços maiores com bilheteira, provavelmente iam ter meia casa e não ganhar com as vendas de bilhetes, por isso optam por receber um pouco menos mas tocar num sítio que vai estar cheio. E muitas vezes acabamos por dar uma ajuda arranjando mais datas noutras cidades, é preferível terem uma digressão com a agenda cheia de concertos pequenos do que agarrarem só um concerto maiorzinho de vez em quando. Da nossa parte, é um investimento que não nos traz retorno, mas lá continuamos ao fim de vinte anos porque é isso que adoramos fazer e também porque ajuda a trazer públicos novos ao Lounge. E apesar das limitações de espaço e budget, já tivemos nomes bem grandes, alguns em aparições surpresa…”, justifica Mário Valente.

Ele que quando fala destas aparições surpresa fala, por exemplo, de um tal senhor chamado Win Butler pertencente a uma tal banda chamada Arcade Fire, que em véspera de um concerto no Rock in Rio aparece na Rua da Moeda com vontade de passar uns discos. Como esse momento, que Mário Valente garante que nunca vai esquecer, há tantos outros, tantos outros melhores momentos destes 20 anos:

“Vou guardar para sempre na memória o concertos dos Kap Bambino. Tinha-os visto em Londres umas semanas antes, ainda em início de carreira, e não descansei enquanto não os convenci a virem cá de propósito. Lá vieram, foi o primeiro concerto que deram em Portugal, e foi absolutamente inesquecível. Qualquer pessoa que tenha estado lá vai dizer o mesmo (e há a atuação inteira no Youtube para confirmar). Nunca me vou esquecer também da primeira visita do Ian Svenonius a Portugal, num concerto incrível com o Publicist (baterista dos Trans Am). Ou a aparição surpresa do Win Butler dos Arcade Fire com vontade de meter música na véspera de ir tocar ao Rock in Rio como cabeça de cartaz. Ou o Angus dos Liars, o Mac deMarco, o Tom Barman (dEUS), Sonic Boom, a malta dos Metronomy, o Nic Offer (dos !!!), o Kyp Malone (TV on the Radio), a Weyes Blood, os Add N to X a fazerem um DJ set caótico no “primeiro andar” do Lounge, dar por mim a beber copos com o Leif Edling dos Candlemass ou ter o olhar sempre atento do Panda Bear em inúmeros concertos”, atira. Isto garantindo ainda que o melhor é nem abrir o baú das suas experiências pessoais como DJ, “senão não saímos daqui hoje”.

Mário Valente com Ian Svenonius

Às vezes, ao falarmos do Lounge, pode dar-se o caso de parecer que estamos a falar de um bar de um outro tempo, que já não se usa, que já não tem espaço nesta noite pós-moderna. Nesse sentido, falta saber se se reservam grandes mudanças para os próximos 20 anos do Lounge. Mike Mwaduma esclarece:

“Paradoxalmente, neste momento para manter tudo exatamente como está é que é necessário fazer mudanças. O Cais do Sodré é um dos epicentros do remoinho gentrificador que surgiu na cidade e temos, naturalmente, que remar com toda a força contra a corrente para nos mantermos no mesmo sítio. Creio que, nesta altura, projetos como o Lounge são mais relevantes que nunca. Não só pelo contributo que dão na salvaguarda do carácter e identidade cultural da cidade mas também pelo papel essencial que têm na renovação e promoção de projetos musicais emergentes ou de cariz mais exploratório. Com base nestes pressupostos diria que o Lounge continuará a ser um conceito pertinente enquanto a cidade valorizar aquilo por que trabalhamos estes 20 anos.”

Para Mário Valente, o segredo desta longevidade é isso mesmo, “o facto de nunca termos alterado o nosso formato de sempre, sempre fomos fiéis ao espírito que está lá desde a génese do Lounge. Nunca fomos atrás das novas tendências, aceitando também as limitações físicas do espaço, acho que é esse rigor que continua a trazer a confiança das pessoas”.

Sábado – já tínhamos dito, não já? Não faz mal, nunca é de mais relembrar – é dia de aniversário e de festa daqueles que parecem não acabar, cujo aniversário do bar se deve cruzar com alguns outros, de clientes especiais ou de músicos da casa. Numa programação que vai desde Vaiapraia convida Filipe Sambado e Luís Severo a Trol2000 (confira tudo aqui) os brindes estendem-se, este ano, para a rua, novidade que só pode agradar a todos. Até podemos pensar nisto com um pré-pré-pré-pré santos populares com menos música romântica; e Maio já não tem érre, já deve cheirar a sardinhas.

O Lounge só fecha às 04h, por isso às vezes dá nisto

“Vamos continuar o formato que já temos experimentado ao longo dos anos, ou seja, matiné recheada de concertos e depois noite adentro com os nossos DJs residentes e vários convidados. A grande diferença este ano é que vamos fazer a matiné cá fora, no beco da Moeda, vai ter sabor a festival ao ar livre. Gosto particularmente da parte da festa durante a tarde porque é altura de reencontro com imensos clientes e amigos mais antigos que deixaram de sair à noite porque já são pais de família e aproveitam este dia para aparecer e trazem os filhos. É uma grande festa para todos. Desta vez com toda a animação a acontecer na rua durante a tarde, vai ser ainda mais bonito. E são vinte anos de conversas para meter em dia”, confirma Mário Valente. Continuação.