A curiosidade era grande na plateia, mas um pano preto não deixava antever o que Grace Jones trazia na manga. Aos 71 anos, a artista nascida na Jamaica é uma criatura lendária, e vê-la ao vivo, além de uma experiência única, é hoje uma oportunidade rara. Nos últimos dez anos, Jones pouco tem atuado. Basta dar uma vista de olhos pelo seu site para perceber isso — na página dedicada à tour, estão apenas assinalados três concertos, todos no Reino Unido. Foi por isso, e por tantas outras coisas, que o concerto desta sexta-feira no NOS Alive foi um momento único que dificilmente se repetirá — ainda que a artista tenha prometido um novo álbum para breve. Não foi a estreia que a organização prometeu, mas foi um espetáculo pelo qual valeu a pena esperar, pelo menos no caso de alguns, uma vida.

Com uma carreira musical que remonta ao final dos anos 70, a cantora, atriz, modelo e ícone da moda que deixou Andy Warhol rendido já correu meio mundo. Nesse mapa global faltam assinalar alguns pontos mas, ao contrário do que foi anunciado pela organização do Alive, Portugal não é um deles. Como relatou a Sapo num artigo publicado esta quinta-feira, Jones esteve em Portugal nos anos 90 e deu cinco concertos em diferentes localidades. Contas feitas, significa que a diva jamaicana não pisava solo português há duas décadas, uma eternidade para quem a viu em Matosinhos ou na Amadora e mais ainda para quem nunca tinha tido oportunidade de a ver pisar um palco. As expectativas para esta sexta-feira à noite eram naturalmente altas, mas todas foram cumpridas depois do cair do pano.

Grace Jones entrou no Palco Sagres com alguns minutos de atraso, uma capa esvoaçante e uma máscara dourada em forma de caveira. Pelo seu corpo, estavam espalhadas pinturas que faziam lembrar o culto voodoo das Caraíbas de que é originária. A primeira parte do concerto foi, aliás, marcada por ritmos tribais, tantos nos adereços que Jones foi colocando e tirando, como nos temas escolhidos. “Nightclubbing”, “This Is” e “Private Life” abriram o espetáculo, repleto de luz e de uma energia que rapidamente se espalhou pelo público. A artista perguntou várias vezes se os portugueses queriam festa, e a festa não tardou a fazer-se no Palco Sagres. “William’s Blood”, “Pull Up to the Bumpe” e “Love is the Drug” foram os pontos altos num concerto onde não houve pontos baixos e que mostrou as diferentes facetas de Grace Jones enquanto cantora.

No mundo da música, a que se dedicou depois de ter lançado uma carreira de sucesso como modelo em Nova Iorque, Jones estreou-se em 1977, com o álbum Portfolio e vários hits dançáveis. Com uma presença forte, que não deixa ninguém indiferente, tornou-se numa referência na cena internacional de clubes noturnos final da década de 1970 e uma presença constante no lendário Studio 54, em Manhattan. No início dos anos 80, virou-se para outras sonoridades, influenciada pelo new wave. A mudança musical foi acompanhada por uma mudança de visual. Jones tornou-se andrógina, exótica, assumindo uma imagem que a marcaria para sempre. Esta sexta-feira, no Passeio Marítimo de Algés, a artista foi tudo isso e muito mais. Foi homem, mulher, inseto rastejante, ameaçador e capaz de morder, rainha do voodoo, feiticeira, mas sobretudo humana. Diva, deusa, exuberante e sempre irreverente.

“Amazing Grace” foi o momento solene do espetáculo e também aquele em que Jones, aí com o mínimo de apoio instrumental, deu provas de que a sua amplitude vocal permanece praticamente inalterada com o passar do tempo. O público sacou dos smartphones, numa das poucas vezes em que valeu mesmo a pena registar um trecho ou uma imagem que fosse para mais tarde recordar. Enquanto transformou um hino cristão numa celebração de si própria, Grace esfregou-se num varão de pole dance. Nada de novo. Reconhecida como ícone de androginia e pansexualidade, há décadas que é desconcertante. Em cima do Palco Sagres, pôs-se de gatas, aventurou-se no twerk, acariciou o corpo atlético de um dançarino, alternou passos de dança básicos com movimentos próprios do estilo contemporâneo. No final, mostrou as mamas, ato jamais desajustado quando vem de um ídolo que desbravou terreno.

Excêntrica e, ao mesmo tempo, próxima e calorosa, Grace Jones soube acarinhar o público. Não obstante as várias saídas de cena sempre que as mudanças de figurino o exigiam, manteve sempre o microfone ligado a estimular a audiência. Depois da máscara de caveira, vieram muitos outros artefactos — uns óculos de sol, uma máscara vermelha, uma espécie de manto com as cores da bandeira jamaicana, uma longa cabeleira branca e um chapéu de coco transformado em bola de espelhos com a ajuda de focos de luz. Música e performance andam de mãos dadas quando se trata de Jones. A certa altura, subiu para as cavalitas de um segurança e percorreu toda a frente de palco, cumprimentando os fãs mais fervorosos. Uma coisa é certa: são 71 gloriosos e inigualáveis anos, capazes de envergonhar a mais vigorosa das pop stars atuais.

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