Não é fácil construir a identidade de um festival, mais difícil ainda é solidificá-la, mas depois de alguns anos a tatear o público, depois de edições de maior sucesso e outras à procura de terra firme (com incursões pelo nu-metal pelo meio), 2005 mudou tudo. Foi há 14 anos. Já lá vai muito tempo, alguns dos que lá estavam hão-de ter sido mães e pais entretanto, já se terão casado e divorciado, muitos até devem ter mudado de vida. Foi o ano em que o festival de Paredes de Coura levou a Portugal Foo Fighters, Kaiser Chiefs, !!!, Death From Above 1979, Pixies, Queens of The Stone Age, The Roots, Nick Cave & the Bad Seeds, Vincent Gallo (uff) e mais uns quantos. Mais marcante do que isso, foi a edição que apresentou pela primeira vez o público português aos The National e aos Arcade Fire — depois de ter feito o mesmo no ano anterior com os LCD Soundsystem.

O mito foi crescendo com os anos e, de então para cá, Paredes de Coura tornou-se sinónimo de futuro: estava encontrada a receita de um festival que revela talentos no momento certo, antes de explodirem em Portugal e no mundo. Aquela não foi, sequer, uma edição financeiramente viável (não deu lucrou), mas foi o momento a partir da qual o “Couraíso”, como é tratado carinhosamente pelos aficionados, passou a ser em definitivo romaria anual de melómanos e local de boas descobertas para os mais distraídos. Criou-se, naquele instante, um filtro de qualidade que atuava também sobre aquilo que é novo. Esta quarta-feira, no arranque de uma 27ª edição que celebra (e muito) o passado, essa história voltou a repetir-se com mais um episódio feliz, com a estreia em Portugal de uma menina-mulher que celebra 29 anos no final do mês e que deixou uma colina a suspirar.

Chama-se Julia Jacklin e vem “das montanhas azuis da Austrália”, como fez questão de dizer, embora a banda venha toda de Toronto, Canadá. O baterista e os guitarristas estão lá para a ajudar, para entrar naquele comboio indie-rock inspirado nos anos 1990 de que Jacklin é passageira ocasional — mas sobretudo para não atrapalharem muito, para pontuarem com discrição as suas canções, deixando que seja a voz de Jacklin, portentosa, a erguer-se acima de tudo o resto enquanto canta  histórias de dores, (des)amores e capítulos próprios da saga da vida feminina.

O cenário também ajudou a que a estreia corresse tão bem que Julia Jacklin acabou a sair do palco quase a saltitar, braços esticados no ar e cara feliz de quem ganhou um público novo. Quando se apresentou às pessoas, às 19h40, era ainda pleno dia, do cimo da colina via-se Julia Jacklin com um cenário verdejante e idílico atrás, bosque interminável céu acima. Alguns, muitos, ficaram mais atrás, sentados ou deitados na relva. Outros, bem menos, foram lá para a frente, ouvi-la tão perto quanto possível. À saída, os comentários habituais das estreias felizes: “isto é do caraças”, “espantoso”, “não conhecia mas a miúda tem pinta”, “primeira tarde, primeiro grande concerto”.

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O arranque foi com “Body” e o que se seguiu foi “Eastwick”, single que Julia Jacklin lançou há quase dois anos, depois de um álbum de estreia a que pouca gente prestou atenção. O mediatismo chegou com a edição do segundo álbum, Crushing, considerado pelo Observador um dos melhores discos do primeiro semestre deste ano. Julia, contudo, quis mostrar que o talento não é novo e continuou pelo passado, prosseguindo com “Leadlight” depois de se apresentar: “Olá, como estão? É tão bom conhecer-vos. Nunca tinha estado em Portugal, portanto obrigada [por virem]”. Os primeiros aplausos deram sinais auspiciosos do que se seguiria e Julia Jacklin, bem humorada, registou-os: “Tão fixe. Estão bêbados ou são simplesmente afáveis? Bom, aceito-vos de uma forma ou de outra”.

A tristeza é sentimento que já deu boas canções com fartura e Julia Jacklin, não sendo tristonha, insere-se nessa linhagem de cançonetistas melancólicos, gente que anda ainda à procura de certezas para a vida (elas algum dia chegam sólidas, duradouras?) e pega na guitarra com vontade de a rever, ruminar pelos encantos e desencantos com que se vive e cresce. Notoriamente bem disposta, ainda fez piadas com isso: “estão a sentir-se tristes? Então vamos ficar ainda mais tristes”, atirou sorridente, saia verde, t-shirt preta, cabelo alourado, pele branquinha. Foi a introdução possível para “Don’t Know How To Keep Loving You”, maravilhosa canção sobre conhecer alguém “tão bem” que já não se sabe como o/a continuar a amar. Daí passou para “Turn Me Down”, em que fez uso da espantosa voz, capaz de ir ao sussurro, ao falsete e ao rock com entranhas, com um fim em que suspendeu as notas da voz cantando bem alto o título. Parece exibição mas nunca é gratuita, nunca soa a produto de marketing, Julia sabe que não se canta uma desilusão como se canta uma manhã de sol.

Ainda houve “Comfort” (sozinha em palco, só com a banda, apenas as notas de guitarra estritamente necessárias, o importante era a voz), “Good Guy” e, já com bolas de sabão a subir pelos céus na plateia e a banda a apoiar no canto, “Pool Party”. Feliz, notou que estavam “mais pessoas do que estava à espera” a ouvi-la, cantou esse possível hino feminino que é “Head Alone” (onde a acordes tantos grita que não quer ser tocada a toda a hora, o corpo dela, é possível gostares de alguém sem lhe estares sempre a pôr as mãos em cima) e terminou em crescendo indie-rock com “Pressure to Party”, que prova em definitivo que é redutor chamar-lhe cançonetista macambúzia, é já artista ecléctica e de mão cheia. Pareceu um daqueles concertos para lembrar daqui por uns anos, quando Julia Jacklin ganhar um estatuto de Angel Olsen (que até já faz canções com Mark Ronson e tudo!) ou o da sua compatriota Courtney Barnett: “Vimo-la em Coura, lembras-te?” Se chegaram umas horas antes ao recinto, o que é improvável, e se viram o seu concerto, uma combinação mais improvável ainda, até os The National eram rapazes para ficar com arrepios.

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No final do concerto de Julia Jacklin, o segundo no palco principal do festival neste dia de arranque — antes, atuaram os bracarenses Bed Legs, que contagiaram as primeiras filas com energia e espírito rock festivo —, a colina começava a compor-se. O público chegaria, contudo, a conta-gotas ao longo da noite, de início para assistir ao rock psicadélico brasileiro dos Boogarins. Tanto o palco como (sobretudo) o público que já quase enchia a colina pareceram excessivamente grandes para a banda de Goiânia, que foi competente e eficiente na viagem especial que proporcionou — solos de guitarra marcianos, tropicalismo cósmico e a voz doce de “Dinho” Almeida a soar bem na noite amena de verão — mas que pareceu incapaz de sair de uma zona de conforto em que parece ter caído sobretudo com o último álbum, Sombrou Dúvida, editado já este ano. Isto apesar de “Sombra Dúvida”, single do disco, merecer todos os elogios. O que sobrou em competência faltou porém em rasgo e em capacidade de surpreender, esta quarta-feira. Também é difícil renovar o interesse depois de tantos concertos dados em Portugal em poucos anos.

Mais capazes de entusiasmar o público estiveram os Parcels, que atuaram logo a seguir aos Boogarins e imediatamente antes dos The National. O grupo de pop-rock eletrónica, que também navega pelas águas da soul digital e pop-funk em que os Jungle se tornaram marinheiros experimentados, prometeu cedo “criar algo especial” esta noite e fez os possíveis para animar uma multidão que os recebeu de coração aberto. Num dos momentos mais inusitados do festival nos últimos anos, a banda australiana decidiu fazer uma espécie de sintonização rádio em tempo real, ou pelo menos assim pareceu, e ouviu-se Jorge Palma a cantar “Encosta-te a Mim”. Fora o momento estranho, foi um concerto bem disposto, com música indie leve e ligeira, a apelar às ancas e aos sorrisos, capaz de juntar adolescentes e veteranos, crianças (até se viam bebés) e adultos, mas que não entra na galeria de atuações notáveis e memoráveis de Paredes de Coura.

Seguiram-se os grandes cabeças de cartaz da noite, a banda americana que mais concertos deve ter dado em Portugal nos últimos anos: os The National. Nos últimos sete anos, só num deles — em 2015 — estiveram ausentes de palcos nacionais. Mas a relação com Paredes de Coura é antiga, foi ali que deram o primeiro concerto em Portugal, em 2005, depois de um terceiro disco que os lançou no universo indie: Alligator, para muitos o melhor da banda. O vocalista Matt Berninger faria aliás referência a esse concerto, lembrando que foi ali que viu pela primeira vez Nick Cave ao vivo, disse-lhe olá, a reação não lhe pareceu melhor do que seria de esperar e daí seguiram desconhecidos como dantes.

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Até aqui, o facto dos The National virem praticamente todos os anos a Portugal nunca afrouxou o interesse dos portugueses: cada concerto mobiliza uma horda de ouvintes, têm sempre espectadores devotos pela frente que cantam as letras todas e choram (foi novamente visível nos ecrãs esta quarta-feira) a ouvir as dores de Berninger tornadas melancolia épica. Neste primeiro dia de Paredes de Coura terá sido aliás muito por causa deles que os bilhetes diários esgotaram.

Se, porém, um concerto dos The National em Portugal é uma missa anual a que até ver quase ninguém falta, se até fãs mais jovens abundam e foram conquistados com os discos recentes da banda, a receita pareceu esta quarta-feira perigosamente perto de se poder vir a esgotar em breve. O concerto, quase inteiramente voltado para discos e canções recentes (e com vocalistas convidadas a ajudar na cantoria, para não destoar demasiado do último disco, I Am Easy To Find, provou que as últimas investidas dos The National na criação de originais ficam aquém dos seus anos de ouro e que os seus concertos atuais têm muito mais público mas algum magnetismo a menos do que os da mítica digressão da banda por Portugal em 2008, feita após o lançamento dos álbuns Alligator (2005) e Boxer (2007).

A transposição das canções para palco foi algumas vezes eficiente mas nunca soou especialmente inspirada — e até houve versões estranhas, como as de “Day I Die” e “Mr. November”, a última com um desafinanço estrondoso de um vocalista que parecia tão trôpego como de costume, demorando-se a olhar, quase incrédulo, para a multidão que via à sua frente. Mesmo a revisitação de “Fake Empire” foi menos feliz do que noutras atuações. Valeram as interpretações de “Bloodbuzz Ohio”, “Terrible Love”, “Where Is Yer Head” (um dos temas novos apresentados pela primeira vez no país) e sobretudo de “Vanderlyle Crybaby Geeks”, a canção com que acabaram o concerto, cantada quase toda sem recurso a microfone, com o som difuso do grupo no palco e o coro do público a criarem um momento íntimo e inesperado.

As canções dos The National, é claro, nunca são más, só já foram melhores — e a banda parece ter alguma dificuldade em conseguir mostrar com os temas recentes a força que emanava quando expurgava clássicos antigos. No ano passado, num outro festival mais a sul e em formato mais best-of, a eficiência esteve mais próxima dos tempos áureos de Berninger, dos irmãos Dessner e companhia. Este ano foi quase impossível não pensar que o concerto, mais dedicado a um disco novo, resultaria melhor em sala fechada — mas talvez fosse aconselhável a banda travar ligeiramente, até para manter a sanidade de um vocalista que pareceu, em alguns momentos, um comboio perigosamente a descarrilar em cima do palco. Mesmo com a simpatia e energia habitual de frontman que faz diabrites, mesmo com a simpatia com que foi autografar um disco de vinil de uma fã. Já de madrugada, atuaram ainda o DJ português Nuno Lopes e o coletivo do Congo Kokoko.