Um dos sítios em que António Variações trabalhou antes de ter uma barbearia na Baixa, foi num cabeleireiro unissexo no Centro Comercial Imaviz (um dos primeiros do seu género em Portugal). Havia pessoas que ficavam lá paradas à porta, a olhar para Variações enquanto trabalhava, algumas apontando-o com o dedo, de tal forma a sua figura excêntrica e colorida dava nas vistas naquela Lisboa agitada pela política da segunda metade dos anos 70, e do pós-25 de Abril imediato. Foi pouco depois que Júlio Isidro o conheceu, levando-o ao seu programa “O Passeio dos Alegres”, na RTP e revelando-o assim ao país inteiro, ele que até então era apenas conhecido na noite da capital e no restrito círculo da música pop/rock, e ainda não tinha editado nenhum disco. Estávamos em 1981.

[Veja António Variações entrevistado por Júlio Isidro em 1984:]

O filme “Variações”, de João Maia, omite essa importante participação do cantor e compositor em “O Passeio dos Alegres”, bem como noutro programa de Isidro, este de rádio, “Febre de Sábado de Manhã”. O que interessa essencialmente ao realizador é António Variações (Sérgio Praia) antes de se tornar famoso, quando era só António Ribeiro, um rapaz que tinha vindo para Lisboa ainda novo, da sua remota aldeia no distrito de Braga, feito a tropa em Angola, estado depois em Londres e Amesterdão, onde aprendeu o ofício de barbeiro. e voltado a Portugal para o exercer. Grande parte de “Variações” é gasta a mostrá-lo a tentar furar no meio musical, a mostrar o esforço e a determinação deste barbeiro que queria ser cantor, para se dar a conhecer e ser devidamente reconhecido num mercado pequeno, pouco recetivo à mudança e à inovação radical que ele representava. É que Variações estava no futuro antes de tempo. (“Dá-me a ideia de que nasci demasiado cedo”, dizia ele numa entrevista ao “Se7e”, em 1982).

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[O trailer de “Variações”, que estreia esta quinta-feira:]

Na rua, nos bares, nos concertos, nas sessões de gravação toscas e no calvário das visitas às editoras, António é acompanhado pelo jornalista brasileiro Luís Vitta (Augusto Madeira), seu amigo e admirador, misto de paladino entusiástico e agente informal, que tinha um programa, “Meia de Rock”. na Rádio Renascença, com Rui Pêgo e António Duarte. Vitta é, juntamente com Fernando Ataíde (Filipe Duarte), antigo colega de trabalho e amante de Variações, e dono da discoteca Trumps, que este reencontra, agora casado, em Lisboa, uma das personagens mais importantes deste filme em que João Maia consegue mostrar que a identidade única e a novidade absoluta que António Variações representava, pelo seu estilo e pela sua música, residiam na capacidade que ele tinha de harmonizar a aldeia e o cosmopolitismo, a tradição e a vanguarda, a música das suas raízes e as influências dos sons pop/rock/punk (e do fado, e do bolero, entre outros) desses anos 70 e 80.

[Veja imagens da rodagem de “Variações”:]

Um filme como “Variações” ficaria comprometido se a época em que se passa não fosse reconstituída com credibilidade. E há aqui um significativo esforço, dos cenários aos figurinos, sem esquecer a produção musical (o filme não usa o playback vocal ou instrumental, é Sérgio Praia que canta sempre e os músicos que o acompanham que tocam) e a fotografia com os tons da época de André Szankowski, para restaurar aos nossos olhos de forma convincente a Lisboa dos finais da década de 70 e dos primeiros anos da de 80. Um esforço que é ainda mais de aplaudir, se pensarmos como a cidade mudou vertigosamente desde então e já desapareceram a maior parte dos sítios por onde António Variações passou e atuou, desde o Rock Rendez Vous à sua própria barbearia, que já foi bazar e loja de todo o tipo.

[Reveja um teledisco de António Variações:]

No papel de António Variações, Sérgio Praia não se fica pela impressionante parecença física com o compositor e cantor, ou por uma composição cuidadosa mas superficialmente mimética da figura. Ele faz uma interpretação em profundidade, uma verdadeira transfiguração, que apanha pormenores tão importantes como a timidez de Variações ao primeiro contacto, a sua cortesia e boa educação, a sua teimosia, o seu sentido do espetáculo, a começar por ele próprio (“Tudo que faço é espetáculo”, escreveu numa carta a um diário lisboeta), ou o seu constante lidar com as cassetes em que gravava as canções (muitas vezes na casa de banho, por causa da acústica), que oferecia a torto e a direito para divulgar, muitas vezes mesmo a estranhos.

[Uma cena do filme:]

Praia devolve-nos o homem e o artista, ele é António Variações na forma de estar e na maneira de ser (a exploração da homossexualidade de Variações é de somenos interesse para o realizador, como pista biográfica, dado romanesco, aviso moralizante ou bandeira de causa), e a sua interpretação esplendidamente abrangente é a trave-mestra desta fita de estreia de João Maia (também autor do argumento, com Karen Sztajnberg), que levou a cabo uma arriscada empreitada, para uma primeira obra, dispensando as situações feitas do filme biográfico e os artifícios, efeitos e tiques “pop”. É de filmes como “Variações”, sérios e sólidos, com qualidade de manufatura e capacidade comercial, falando de factos, acontecimentos e figuras que dizem algo aos portugueses, que o nosso cinema precisa como pão para a boca.