“Unbelievable” começa sem paninhos quentes: na primeira cena, a estudante universitária Marie Andler descreve a um polícia os detalhes do momento da sua violação. A narração é intercalada por imagens do sucedido, filmadas do ponto de vista de Marie, como se os seus olhos fossem os nossos olhos. Se esta cena lhe der a volta ao estômago, o melhor é estar preparado – ao longo do primeiro episódio, a jovem descreverá, a polícias e enfermeiros, mais cinco vezes o que lhe aconteceu naquela noite, na sua cama, enquanto dormia. E no final, a história muda. Ou será que não?
A nova mini-série da Netflix baseia-se em factos verídicos ocorridos em Oakdale em 2008 e noticiados pelo site de investigação jornalística sem fins lucrativos ProPublica, uma plataforma vencedora de vários Pulitzer. E há alguma ironia na batida expressão “factos verídicos”, já que a questão central da série é exatamente não se saber o que é verdade e o que é mentira. “Unbelievable” coloca frente a frente quem acredita que Marie foi amarrada e vendada e sexualmente abusada por um homem misterioso e quem crê que a jovem de passado problemático está apenas a ter uma das suas típicas chamadas de atenção.
[o trailer de “Unbelievable”:]
Duas das principais personagens de “Unbelievable” não aparecem sequer no episódio inaugural da trama. É que, tal como aconteceu na vida real, foram precisos três anos até a polícia reabrir o caso, ao abrigo de uma outra violação. O caso de Marie passa a estar nas mãos das agentes Karen Duvall (a actriz Meritt Wever de “Nurse Jackie”) e Grace Rasmussen (a sempre incrível Toni Collette de “Little Miss Sunshine”) e é aqui que tudo pode mudar. Se em 2008 assistimos à condescendência dos polícias, todos homens mais velhos, perante a alegada vítima, aqui há quem esteja pronto a desenrolar o complexo novelo do trauma.
Apesar de ter ocorrido há mais de uma década, a estreia desta mini-série não podia vir num timing mais certeiro. De cada vez que surge mais um caso do chamado movimento Me Too, basta passear numa caixa de comentários online para perceber quantas pessoas levantam a dúvida sobre o que se terá efetivamente passado. Nunca terão existido tantos casos de abuso sexual na ordem do dia, mas como consequência nunca existiram tantos chorrilhos de “mas porque é que só falou agora?” e de “aquela história está muito mal explicada”. Se um dos intervenientes for uma figura pública, então, podem contar com um qualquer “Passadeira Vermelha” a fazer a análise grotesca de sala de espera de dentista, sem a benesse de uma simpática anestesia. A vítima tem sempre hipoteticamente uma agenda.
“Unbelievable”, logo ao primeiro episódio, mostra a intensidade, confusão e juízo de valor a que pode estar sujeito quem decide denunciar. Como tem pouco a ganhar e muito a perder – Marie oferece-se para fazer um teste no detetor de mentiras, mas é lhe dito que se não passar irá perder a bolsa que lhe permite continuar a estudar; ao mesmo tempo, é renegada por todos os seus pares no campus universitário. O episódio acaba com a contemplação do suicídio – físico, já que o social o fez quando retirou a queixa e admitiu uma mentira que afinal não o é. São oito episódios com outras tantas horas, um shot de angústia e uma lição de empatia.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa