Seis intérpretes – não atores – tocam o corpo e dizem o que têm do pai e da mãe. As mãos que parecem salsichas vindas da mãe, o nariz abatatado do pai, tudo numa coreografia morna que nos situa no período do colonialismo português, mas, desta vez, naquilo que os progenitores deixaram como legado, o que é que dessa zona histórica habita nos corpos e mentes destes filhos. Há, entre eles, filhos de soldados portugueses que nunca saíram totalmente da mata, da frente de batalha; filhos de trabalhadores de bancos; filhos de hospedeiras da TAP; filhos de imigrantes chineses que tinham uma “cantina para indígenas” em Moçambique, por aí. Filhos disto tudo. E mesmo aqueles que, não tendo esta ligação familiar, são também filhos desta página da história nacional.
Os Filhos do Colonialismo é o espectáculo que encerra a investigação de Doutoramento de André Amálio sobre o fim do colonialismo português, que já gerou quatro criações, sempre no registo de teatro documental, antes desta: Portugal não é um país pequeno (2015), Passa-Porte (2016), Libertação (2017) e Amores Pós-Coloniais (2019). O primeiro partia de testemunhos de retornados que estiveram em África nos 50 e 60; o segundo aborda a vinda para Portugal, de inúmeros africanos que fugiam dos conflitos africanos gerados pelo colonialismo português; o terceiro falava dos movimentos de libertação e baseava-se ainda na análise aos discursos políticos dos dois lados da trincheira; e, por fim, o último, falava das relações amorosas, o que significava amar em espaço colonial.
Mas como é que aqui chegámos? Pois. Para isso recuemos até 2008, mais precisamente a Londres e à Goldsmiths University: “Fui para Londres em 2008, estive a fazer um mestrado de criação, na Goldsmiths, estava na formação de teatro e a Tereza estava lá em formação de dança. Começámos a colaborar bastante e, no final desse mestrado, fizemos um espectáculo a que chamámos Hotel Europa. E era um espectáculo onde tentávamos olhar para os nossos pais, e ver como é que eles eram produto do sistema político em que tinham crescido, no meu caso do fascismo, no caso da Tereza o comunismo. Criámos esse espectáculo a partir da vida deles a partir destes esqueletos no armário que a Europa tem”, explica André Amálio.
Portanto, já aqui, bem cedo, bem antes, havia essa ideia de remexer no passado político de outras zonas do globo. Acrescente-se ainda que os pais de André haviam estado em Moçambique e que ele, um pouco incitado por esse mestrado e, particularmente, por Tereza Havlíčková, se foi apercebendo que não sabia muito sobre o tema, que pessoas que não eram portuguesas sabiam mais do que ele. “Percebia que sabia muito pouco, muito pouco sobre a vida dos meus pais em Moçambique, percebi que aquilo que tinha aprendido nas aulas de História era uma parte muito pequena daquilo que tinha acontecido, que havia muitas coisas ligadas à escravatura e à opressão, que eu não fazia ideia, ainda tinha aquela versão de que nós não fomos maus. Aí começou a vontade de fazer um doutoramento sobre o fim do colonialismo português e também me apercebi que era através do teatro documental que o queria fazer”, conta.
E lá foram eles. Lá se formou o Hotel Europa com esse intuito de meter o dedo na ferida, virar as gavetas encerradas pelo regime, desvendar a gestão criminosa e que tão má-publicidade gera ao nosso país. Mas aqui está-se pela verdade. Passaram pelo Maria Matos, pelo Teatro Nacional D. Maria II e chegam, agora, já no fim, à Culturgest e logo inseridos neste Ciclo Memórias Coloniais, onde são apenas – “apenas” é como quem diz – uma parte da programação que mistura cinema, teatro, conferências e debates.
E além deste Os Filhos do Colonialismo, apresentam ainda uma instalação e uma performance – de 13 horas, que encerrará todo o ciclo – chamados O fim do colonialismo português. A instalação é uma oportunidade única de mergulhar na investigação do Hotel Europa, onde vão expor todo o arquivo, todas as mais de cem entrevistas em versão completa, as fotografias, os aerogramas, os documentários, os livros, tudo. E, a tal performance, é André Amálio durante 13 horas à roda deste material. E isto, estimado leitor, só adensa a necessidade de que precisamos de falar disto — ficar por aqui, aliás, seria curto, ainda que, obviamente, isto signifique muito para alguém que despendeu os seus últimos anos por esta causa:
“É algo enorme, claro, depois destes anos todos a debruçarmo-nos sobre isto, ter esta oportunidade é algo gigante. Temos sentido sempre que este é um trabalho sobretudo urgente, não temos sido capazes de deixar este tema porque isto é urgente, há um movimento na sociedade portuguesa que quer olhar para isto, que quer discutir isto de uma forma que nunca foi feito e para nós tem sido muito importante fazer parte, estar presentes”, admite.
Foquemo-nos, por agora, mais no espectáculo Os Filhos do Colonialismo. Falamos de um espectáculo profundamente comovente, bonito, onde se funde ainda bateria, guitarra, dança, Beach Boys e o seu “I Get Around” para espalhar o postal de praia que contrastava com o terror que outros viviam, episódios profundamente traumáticos, mas, a maior parte deles contada por quem não os viveu. Esta geração que ouviu falar, que viu imagens – quando viu –, é ela quem está diante de nós como que a levantar a camisola e a mostrar as marcas corporais de um tempo que não tem como não estar neles, nem que seja indiretamente. E ao contrário do que acontece noutros espectáculos, aqui, o Hotel Europa quis ter a fonte real em palco: “Este espectáculo é também uma forma de olhar para mim. Como é que olho para a minha geração que não viveu nada daquilo, mas que agora quer pensar, quer agir. Para mim, foi uma coisa que foi crescendo, à medida que fui fazendo outros espectáculos, esta coisa de não ter atores, ter sim as pessoas em que me estou a centrar em cena, quebrar esse intermediário, foi uma vontade cada vez maior. A nós nunca nos importou muito o virtuosismo, sempre estivemos à procura de pessoas que se relacionavam diretamente com esta matéria. E chegámos aqui onde escolhemos não ter ninguém a fazer de outrem”, enquadra Amálio.
E dessa forma torna-se um objeto ainda maior. Há auscultadores que colocam filhos a ouvir as entrevistas que o Hotel Europa fez aos seus pais, mais ainda: filhos a entrevistar os pais indiretamente. E isso, ainda que seja uma construção cénica, não deixa de estar no terreno da verdade, não deixa de dar a estes não-atores a possibilidade de saberem mais, de fazer perguntas como um estranho faz e bem sabemos como tantas vezes preferimos falar com um estranho do que com um familiar, como confirma André Amálio:
“No caso deste espectáculo percebemos que as únicas pessoas que queríamos entrevistar eram os pais destas pessoas, porque tal como aconteceu comigo, esse espaço de transmissão de memória não tinha acontecido, percebemos que era o espectáculo que estava ser esse veículo de pais para filhos e que agora será destas pessoas, destes filhos, para todo um público, parece quase mágica, como é que um processo de teatro tem essa capacidade transformadora”.
Explorando o conceito de pós-memória, criado pela norte-americana Marianne Hirsch, que descobriu nela memórias que não lhe pertenciam, memórias do Holocausto, do qual os seus pais eram sobreviventes. E aí, desatou a investigar, falando com os filhos e com os próprios sobreviventes do Holocausto. E, claro, essa pós-memória será sempre algo que pertence ao mundo da subjetividade, que não pode ser integrado de forma ordeira em estatísticas e census desta vida, pertence ao mundo onde uma coisa pode ser diferente para cada pessoa, para cada sobrevivente de um período conturbado. “Acreditamos que a vida é profundamente subjetiva, nunca objetiva”, diz André Amálio. Portanto, sim, há que repetir que precisamos de conversar sobre o colonialismo português.
Para o Hotel Europa, seguem-se outros caminhos, menos coloniais, mas nem por isso menos histórico-políticos. “Estamos já a partir para outros ciclos, estes dois espectáculos feitos em 2019, são já portas para novos ciclos. O primeiro sobre relações amorosas condicionadas pela ideologia, vamos fazer um espectáculo no próximo ano que se chama Amores na Clandestinidade, em que vamos olhar para as relações amorosas de pessoas que viviam na clandestinidade a lutar contra o fascismo português. E outro que se vai chamar Os Filhos do Mal, também com não-actores, com filhos de agentes da ditadura”. Que venham eles.