O juiz conselheiro José Luís Lopes da Mota, que foi suspenso um mês de funções por pressões no processo Freeport, em 2009, é um dos três candidatos portugueses escolhidos para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O magistrado, que à data do processo era o procurador que presidia à Eurojust, pediu, entretanto, para ser reabilitado, ou seja, para que a pena disciplinar desaparecesse da sua ficha, o que foi aceite pelo Conselho Superior do Ministério Público depois de avaliar o seu comportamento após a sanção.

O cargo no Tribunal Europeu é atualmente ocupado por Paulo Pinto de Albuquerque, que acaba o mandato em março de 2020. Lopes da Mota, a professora Ana Maria Guerra Martins e o juiz do Tribunal de Contas José Mouraz Lopes são os três selecionados por uma comissão independente presidida pelo juiz conselheiro António Henriques Gaspar e composta pelo juiz José dos Santos Cabral, pelo professor Rui Manuel Gens de Moura Ramos, pelo procurador José Manuel dos Santos Pais e pelo advogado Paulo Saragoça da Matta.

Segundo confirmou ao Observador fonte oficial do Ministério da Justiça, estes três candidatos — escolhidos entre uma longa lista pela comissão independente — foram já ouvidos em Paris no último dia 20 de setembro.

Lopes da Mota estava à frente da Eurojust quando falou com os procuradores que investigavam o caso Freeport

O caso de Lopes da Mota remonta a 2009, era ele o presidente da Eurojust, o organismo europeu de cooperação judiciária. Corria o mês de abril quando foram tornadas públicas as conversas que manteve com os dois procuradores que investigavam a construção do Freeport, em Alcochete.

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O caso levou à abertura de um inquérito, determinada pelo então Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro, depois de um alerta de João Palma, que presidia ao Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, e que agora se encontra no Tribunal do Comércio, em Lisboa. Ess mesmo inquérito foi depois convertido em processo disciplinar. Lopes da Mota acabaria suspenso durante um mês, numa decisão da qual recorreu, mas que acabou confirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo.

Tudo começou na manhã de 24 de março desse ano, quando Lopes da Mota, que chegou a ser secretário da Estado da Justiça no governo socialista de António Guterres, terá telefonado ao procurador Vítor Magalhães dizendo-lhe que precisava falar com ele e com o colega Paes Faria, com quem partilhava a investigação ao Freeport. Nesse processo, aberto em 2004 depois de uma denúncia anónima à PJ de Setúbal, investigava-se um alegado pagamento de “luvas” no licenciamento daquele espaço comercial. José Sócrates, que nunca chegou a ser arguido, foi um dos investigados, porque era, à data do licenciamento, ministro do Ambiente (também do Governo de Guterres).

Os casos. Freeport, Face Oculta e Monte Branco

Os procuradores combinaram então um almoço para esse dia, mas, quando Lopes da Mota voltou a ligar para perceber onde era o restaurante, percebeu que não iram estar sós e que havia mais colegas presentes. “Finda a refeição, todos caminharam para as instalações do DCIAP “, lê-se no acórdão do Supremo, que manteve a pena disciplinar. Lopes da Mota e os dois procuradores acabariam os três num gabinete.

“Disse-lhes então o ora arguido, em tom sério e de aviso, que tinha estado reunido na véspera com o Senhor Ministro da Justiça [à data Alberto Costa], de quem também os informou ser amigo e que o mesmo se mostrara preocupado com a morosidade do citado processo “…” e com a gestão política dos tempos da realização das diligências de investigação desse inquérito”, lê-se.

Lopes da Mota também terá contado aos magistrados que, nesse mesmo encontro, o ministro lhe perguntou se os procuradores eram “capazes de não fazerem o aproveitamento político do processo”, uma vez que as eleições estavam próximas. O procurador à frente da Eurojut terá dito que eles seriam de confiança e que punha as “mãos no fogo” por eles. Ainda nesse encontro, Lopes da Mota disse também que o próprio primeiro-ministro, José Sócrates, teria dito a Alberto Costa que os dois procuradores estavam isolados naquele processo. “Porque não tinham a confiança do Senhor Procurador-Geral da República [Pinto Monteiro] nem da Senhora Diretora do DCIAP [Cândida Almeida]”. Mais:

O “Senhor Ministro da Justiça lhe havia dito, por outro lado, que o Senhor Primeiro Ministro lhe tinha referido também estar muito preocupado com a evolução e andamento do processo e que, se o PS por causa de tal processo viesse a perder a maioria absoluta, iria haver retaliações e ‘…que alguém pagaria caro por tal facto…'”, lê-se

Vítor Magalhães e Paes Faria sentiram a sua autonomia ferida. Ainda assim, nesse dia 24 de março, entregaram-lhe um relatório intercalar da PJ com as diligências que já tinham sido feitas no processo. Uma entrega que já tinha sido combinada antes, uma vez que Lopes da Mota passou a ser o interlocutor com as autoridades inglesas, necessárias para a investigação do caso.

Dois dias depois, ambos os procuradores terão almoçado com o juiz de instrução Carlos Alexandre, antes de uma reunião. E ter-lhe-ão contado a conversa que tinham tido com Lopes da Mota. Já no gabinete de trabalho o DCIAP, também na presença de uma coordenadora da PJ, Lopes da Mota voltou a ligar a Vítor Magalhães. Como o telemóvel estava em cima da mesa e o procurador se tinha ausentado da sala, o colega atendeu-o.  O responsável pela Eurojust disse-lhe que tinha estado a analisar o relatório da PJ e que os crimes em investigação podiam já ter prescrito. Disse-lhes ainda para terem “cuidado” com isso. E insistiu que, caso continuassem a investigar, podiam enfrentar um processo e serem responsabilizados por isso.

Na sequência do telefonema, o juiz Carlos Alexandre acabou por admitir que também ele tinha recebido um telefonema de Lopes da Mota com um argumento idêntico. Todos consideraram que o telefonema podia ser uma forma de pressão.

Em sua defesa, Lopes da Mora lembrou que era ele quem assegurava a cooperação entre as autoridades portuguesas e as britânicas. O magistrado alegou que os colegas consideraram a conversa mantida no DCIAP como um “recado” do Governo, mas, a ter sido como eles descrevem, seria mesmo uma “ameaça”. E nada disso foi invocado pelos queixosos. O agora juiz conselheiro lembrou mesmo os “contactos assíduos, por vezes diários, e mesmo mais que uma vez por dia, durante mais de seis meses (de setembro de 2008 a março de 2009)”, fosse por telefone ou por email, e o “clima de amizade, companheirismo e informalidade”. Pelo que ficou “surpreendido” com as acusações de indevida ingerência.

Os seus argumentos não convenceram e Lopes da Mota acabou condenado disciplinarmente à pena de suspensão de serviço, durante um mês. O então procurador ainda fez uma queixa contra o Conselho Superior do Ministério Público, na qual pedia que a decisão do  Plenário do Conselho Superior, para onde tinha recorrido, fosse considerada nula, alegando ter sido apenas um “bode expiatório” para o Procurador-Geral e para o presidente do Sindicato. Mas o Supremo Tribunal Administrativo não lhe deu razão.

Atual ministra da Justiça votou vencido

Depois de ser suspenso, o procurador-geral adjunto, que alegou sempre estar “inocente”, pediu para cessar de funções na Eurojust, alegando que era “a melhor defesa dos interesses do Estado português” face à suspensão aplicada pelo Conselho Superior Ministério Público (CSMP).

A secção disciplinar do CSMP foi presidida pelo vice-procurador-geral da República, Mário Gomes Dias, e constituída por Barradas Leitão (Relator), Rui Alarcão, Pinto Nogueira, Francisca Van Dunem, Paulo Gonçalves, João Paulo Centeno e Edite Pinho. Van Dunem , que era à data procuradora-geral distrital de Lisboa e que hoje é ministra da Justiça, votou vencido. Segundo ela, o processo foi instruído sem “prova direta” e houve depoimentos divergentes relativamente às verdadeiras intenções do contacto de Lopes da Mota. Por isso, entendia Van Dunem, ele deveria usufruir do princípio do in dubio pro reo.  Ou seja, em caso de dúvida, absolve-se. Na altura, a magistrada tinha ouvido as versões de todos os intervenientes numa reunião na Procuradoria.

Já depois deste processo, Lopes da Mota, que se candidatou ao Supremo em 2017 e entrou como juiz conselheiro, pediu ao Conselho Superior do Ministério Público que fosse reabilitado. O estatuto dos magistrados prevê a figura da reabilitação, independentemente da revisão do procedimento disciplinar. Segundo a lei, é concedida a reabilitação a quem a demonstre merecer, pela boa conduta posterior à aplicação da sanção. E foi isso que o Conselho considerou, em inícios de 2017, aceitando limpar a folha disciplinar de Lopes da Mota, que agora poderá ser escolhido como juiz português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.