O hábito faz o monge, mesmo que o monge não tenha os dois dentes da frente e o penteado possa ser comparado a uma cabeça desvairada com vontade própria. Nesse sentido – e bem sabemos como o ser humano é dado aos  costumes e tradições – admitimos que ver Danny Brown com o sorriso Colgate, acabadinho de sair do dentista, e com o cabelo rapado e portanto muito mais normativo, nos deixou o coração mais frio. Parte do amor também se devia à sua excentricidade, que não estava só na voz anasalada e arredondada – já alguém experimentou escutar Danny Brown num sítio cheio de eco? Não se vai arrepender – mas também no jeito destrambelhado com que rimava, no seu riso que era grito de libertação, interlúdio e marca de água.

Mas ficar por estas considerações é errado. Porque a voz prossegue encaracolada e distinta, o seu desvario não desapareceu – talvez tenha mudado de direção – e o nosso estimado Danny Brown continua a ser Danny Brown. Portanto, ufa, já podemos respirar. Aquilo que alimenta tantos haters do rapper de Detroit nunca vai morrer, amigos, ele vai continuar a roçar o irritante e, ao mesmo tempo, prossegue genial.

“uknowhatimsayin¿”, o novo álbum de Danny Brown

Ainda que tenha organizado o cabelo e a boca, basta um rápido mergulho na primeira canção de uknowhatimsayin¿ para tudo ficar claro. Em “Change Up” diz-nos: “Never Look Back / I would never change up”. O instrumental é minado por uma bateria morna e insistente e isso, sobretudo se pensarmos no disco anterior – o brilhante Atrocity Exhibition, 2016 – é já um pequeno desvio no percurso, uma curva para uma estrada nova, ainda que mantenha o aspeto de rap antigo, esse legado dos noventas. Prosseguimos nesse atalho na maravilhosa segunda faixa: “Theme Song”. Mais ainda mergulhado nesse beat de tempos idos, que a nova escola rejeita seguramente, mas cuja simplicidade assenta que nem ginjas no desordeiro rapper de Detroit.

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Convém recuar ainda mais. Este é o quinto disco de Brown, e se o compararmos aos anteriores é, seguramente, o mais refinado, o mais soul, o menos faço-o-que-me-apetece-e-vocês-que-se-lixem. Ainda que a escrita e alguns episódios sónicos nos mantenham nessa linha e nos relembrem constantemente que Danny Brown continua a ser um rufia: não vai a programas de culinária e até ver não escreveu um livro de memórias – e enquanto assim for está tudo bem (ouvir a incrível “Savage Nomad”, nome roubado a um gang nova-iorquino dos anos 70, é a confirmação absoluta de que as ruas ainda correm nas veias de Danny). Atrocity Exhibition já se aproximava dessa lógica menos histérica e louca – menos XXX (2011), segundo disco cuja capa sugere a ingestão de uma pastilha de ecstasy – mais soul, se quisermos, mas era profundamente distorcida por uma ideia malévola qualquer, uma imagem experimental por focar. Em relação a Old (2013), disco que atirou Brown para a piscina dos grandes, para o elevador dos patrões, este uknowhatimsayin¿ é, provavelmente, mais complexo na sua produção, mas menos intenso nas suas manobras de escrita e menos amplo, uma vez que esse objeto Old era de uma ambição geográfica enorme, com recantos de tantas influências e estilos diferentes.

[“Dirty Laundry”:]

Convém dizer algo que até aqui tínhamos escondido e que muito importa: a produção-executiva e alguns dos instrumentais são de Q-Tip, uma das cabeças dos lendários A Tribe Called Quest, e isso nota-se. “Dirty Laundry”, precisamente com produção de Q-Tip, é uma canção festiva e caricata que o homem podia ter roubado The Avalanches. Segue-se “3 Tearz”, tema que parece clássico com atualização eletrónica, que junta o beat de JPEGMAFIA e as vozes dos sempre frescos Run The Jewels. E o que dizer de “Best Life”? Canção-comemorativa, mais uma produção na mouche, açucarada mas sem cair no foleiro. Uma canção que podia meter o rapper em maus lençóis, dada a felicidade que por ali está estampada. E convenhamos, qual é o problema de alguém dizer de peito cheio: “’Cause ain’t no next life, so now I’m tryna live my best life”.

Para o final, a coisa não abranda, pelo contrário, “Negro Spiritual”, com JPEGMAFIA, reflecte sobre a sua condição, que já antes, em “Change Up”, havia mencionado, como não? Ser negro e ter de viver neste mundo pouco simpático é uma das formas de expressão de Danny Brown. Um tema praticamente funk, de refrão dançável, que abre caminho para “Shine”, uma respiração profunda, densa, como se o jogo seguinte fosse ver quem aguenta mais tempo debaixo de água sem vir ao de cima.

[“Best Life”:]

A última e décima primeira canção – até nisto Danny Brown se aprimorou, é o seu disco mais curto – “Combat”, é rap-soul para animar qualquer viagem de transportes públicos, para provavelmente pensarem que somos os mais dreads da carruagem, enquanto cantamos:

“It’s a combat zone
Every fiend, want they own
Red top, blue top

Get the green on the block”

Porque ser ordeiro, parar de fazer figuras que para muitos são consideradas menos próprias, é parar de lutar, é ser menos Danny Brown. E isso é que não pode ser. Mesmo que agora tenhamos que usar smoking e sapato clássico, mesmo que tenha mudado, continua inconfundível. Fechou a baliza que tinha nos dentes e ainda assim fez golo.