De cada vez que lemos um conto de Natal há um registo imaterial que se cria. Há uma memória que guardamos com carinho e que passamos a associar aos valores essenciais desta quadra, como a bondade, a partilha, a entreajuda ou a esperança. Porque estes são os valores que nos são transmitidos pelas personagens que habitam as narrativas natalícias. Passados de geração em geração, os contos de Natal permanecem não só nas estantes das nossas casas ao longo dos anos, mas dentro de nós. Este é um conto de Natal que nos fala disso mesmo, de como o amor pelos livros nos permite – em qualquer altura – pedir ajuda a todas as personagens que nos vão sendo apresentadas. E desta forma conseguimos tudo, até salvar vidas. Ora leiam:
O milagre dos contos de Natal
Era uma vez uma menina que, além de não ter irmãos, também não tinha primos ou outras crianças por perto, a não ser os amigos da escola. Esta menina era eu e o bom disto de não ter irmãos nem primos é que os presentes de Natal eram só para mim – uma sortuda, portanto. O lado mau é que as férias de Natal eram passadas na mais completa solidão, na aldeia dos meus avós.
Quando lá chegava, os primeiros dois ou três dias passavam-se bem: revia a vizinhança, visitava os lugares secretos da aldeia e comia os petiscos da avó. Mas depois era o vazio. Valiam-me os livros, pois estantes carregadas era coisa que havia em grande número naquela casa antiga.
Todos os anos, a avó dizia-me a mesma coisa, como se eu precisasse de incentivo:
– Não fiques aí parada sem fazer nada. Porque é que não lês?
A avó perguntava-me isto e, ao mesmo tempo, apontava o dedo à estante dos contos de Natal e outras histórias, que ela me lia desde que eu era bebé. E, todos os anos, eu repetia o ritual de devorar os contos (assim como outros livros), chegando ao ponto de já os saber de cor.
O ano em que tudo aconteceu
Mas houve um ano em que tudo foi diferente. Estávamos em 1984 e eu lembro-me bem da data, porque nesse ano tinha a esperança de receber o livro Uma Aventura na Escola, embrulhado e oferecido como se o Pai Natal existisse mesmo. É verdade que, por essa altura, eu começava já a desconfiar que o homem das barbas era o avô mascarado, mas mesmo assim continuava a fingir que acreditava.
Quando nessas férias me dirigi à estante para pegar no conto que habitualmente lia em primeiro lugar, senti uma enorme tristeza a invadir-me. É que o primeiro conto costumava ser o d’ A Menina dos Fósforos que, como toda a gente sabe, é uma enorme tragédia. De tal maneira era triste que, no ano anterior, ficara dois dias seguidos a chorar depois de o ler. Como é que o Hans Christian Andersen tinha escrito uma história tão pesarosa era coisa que me custava compreender. Afinal, por que carga de água matou ele a rapariga no final? Pobre, frágil, cheia de fome e frio e obrigada a vender fósforos para sobreviver, ainda por cima a menina acabava por morrer. Sentia aquela história como uma terrível injustiça com que não sabia lidar.
“Se ao menos fosse possível salvá-la…”, pensei. Mas como é que poderia alterar o rumo dos acontecimentos inventados pelo autor dinamarquês? Matutando nisto, encostei-me à estante dos contos de Natal e, desastrada como era, caí. Em cima da minha cabeça caiu também, aberto, um livro. E de lá de dentro saiu… uma rapariga. Saiu uma rapariga de dentro de um livro!
Um plano para uma aventura a sério
Aquela menina que tinha acabado de sair de dentro do livro conhecia eu bem, já que todos os anos me fazia também companhia nesta época: era a Joana. Desse lado talvez não estejam bem a ver quem é, mas se eu vos disser que é a Joana do conto A Noite de Natal, da Sophia de Mello Breyner Andresen, começarão logo a acenar que sim com a cabeça. Confere?
Então, a Joana apareceu-me ali à frente, como se fosse a coisa mais normal do mundo. E, desembaraçada como só ela, comunicou-me:
— Claro que vim em teu auxílio, pois chamaste-me sem te dares conta. Vim, porque se fui capaz de salvar o Manuel, que era pobre e não recebia presentes de Natal, talvez seja a pessoa ideal para te ajudar com a Menina dos Fósforos. Concordas ou achas que estou a ser convencida?
E eu, que estava a pensar que se calhar isto tudo era porque tinha batido com a cabeça na estante, dei por mim a responder a uma personagem inventada por uma poetisa:
— Joana, ainda bem que vieste! Como é que se faz isto de salvar uma criança como nós?
— Vais precisar de três coisas e uma delas já trago aqui comigo: um plano. Mas as outras duas dependem de ti.
Primeira etapa: acreditar
Desconfiava de tudo o que estava a acontecer naquele momento. Sobretudo, suspeitava do meu avô, que eu sabia ser bem capaz de me pregar uma partida destas. Mas os meus avós não estavam em casa naquela manhã e a voz da suposta Joana era demasiado suave e cintilante para poder ser o meu avô. Talvez lendo os meus pensamentos, disse-me logo de seguida:
— Antes de mais, precisas de acreditar. Porque se não acreditares nada existe, nada é possível. O Natal não é Natal e eu não sou eu. E a vida da Menina dos Fósforos não poderá ser salva.
Fiquei a pensar naquilo que me estava a ser dito por uma Joana de papel e nem sabia bem o que havia de lhe responder. Como poderia eu acreditar numa coisa daquelas? Estiquei as mãos para lhe tocar, mas ela esgueirou-se com uma gargalhada e avisou-me:
— Acreditas ou não acreditas? Não vale tocar.
Se eu não acreditasse, é certo e sabido que a nossa história acabaria ali. A Menina dos Fósforos continuaria lá no céu com a avó dela e eu continuaria na terra com os meus avós. Mas se eu acreditasse… bom, se eu acreditasse tudo era possível. Foi assim que decidi acreditar e estendi-lhe a mão, tal como fazia com o meu pai quando ainda não sabia andar bem, para poder ir ver com ele os seus livros. Desta vez, ela não se escapou e deu-me a mão também.
Segunda etapa: entreajudar
No preciso instante em que as nossas mãos se tocaram, outra coisa espantosa aconteceu: um novo livro da estante dos contos de Natal caiu e, desta vez, não foi preciso um encontrão dos meus para o desencadear. O livro em questão era o do conto O Abeto de Natal — que também leio todos os anos, claro —, e, ao abrir-se à nossa frente, o próprio Abeto começou a sair de lá de dentro. Cresceu, cresceu e cresceu em direção ao teto da casa dos meus avós, com os ramos a roçarem os candeeiros e alguns a quererem sair pelas janelas. Eu não sabia se havia de chorar ou de rir, porque isto de ter um pinheiro a transbordar da nossa casa é uma coisa muito engraçada de se escrever, mas vê-lo acontecer à nossa frente é bem diferente.
Estava eu ainda sem saber o que fazer e de olhos postos na porta — se os meus avós chegassem naquele momento é que havia de ser bonito — quando a Joana começou a falar com o Abeto, como se já o conhecesse de outros natais:
— Abeto, fomos chamados para uma missão e esta é muito especial, temos de salvar a Menina dos Fósforos e tu és fundamental.
O Abeto abriu muito os olhos — é verdade, os abetos têm olhos —, aclarou a voz, como se não falasse há centenas de anos, e disse-nos:
— Mas que ajuda poderei eu dar numa missão como essa? Eu, que estou velho, cansado e por todos fui mal tratado e ignorado?
A Joana respondeu-lhe:
— Quando eras pequeno, tinhas o sonho de um dia viveres grandes aventuras. Pois bem, esta é a tua oportunidade.
E eu acrescentei:
— Abeto, não farias tudo por tudo para salvar uma irmã? É que é isso mesmo que a Menina dos Fósforos é para ti, ou não é verdade que são os dois filhos do mesmo autor?
Não é para me gabar, mas acho que este argumento foi o que acabou por convencê-lo a juntar-se a nós. Rapidamente a Joana pôs o plano em marcha e, parecendo-se muito com a minha mãe quando dá ordens lá em casa, atribuiu tarefas a cada um. Percebi que precisávamos da ajuda de mais alguém, porque ela pôs-se a abanar a estante até que mais um livro caiu.
Terceira etapa: festejar – ou talvez não
De repente, a sala dos meus avós começou a ser pequena para tantas personagens. Além de mim, da Joana e da árvore, juntaram-se ainda Os Duendes e o Sapateiro. Como é óbvio, os irmãos Grimm não podiam ficar de fora desta aventura. Seguindo o plano traçado pela Joana, o Sapateiro deu orientações aos dois Duendes e estes começaram a trepar pelo interminável Abeto. Subiram, subiram e subiram através dos ramos que saíam pela janela em direção ao céu. Como eram pequenos e muito leves não tiveram dificuldade nenhuma e continuaram a subir até que os deixámos de ver.
O silêncio instalou-se e não se ouvia sequer o relógio de parede do meu avô.
O tempo passou, passou e passou.
Até que, após o que nos pareceu uma eternidade, os Duendes regressaram. E com eles a Menina dos Fósforos. Tínhamos conseguido trazê-la de volta, era altura de festejar!
Quer dizer… festejar?! A sério? Eu não achava que trazer a Menina dos Fósforos cá para baixo fosse exatamente uma coisa boa. Ou melhor, não daquela maneira. E expliquei-lhes o meu ponto de vista:
— Se é para salvar a Menina dos Fósforos não podemos deixar que ela volte a viver na mesma pobreza em que vivia antes. Aliás, se é para fazer um milagre, então que nenhuma criança do mundo conheça a miséria. E que todas — todas sem exceção — recebam presentes de Natal.
Depois de lhes dizer isto, dirigi-me à estante dos contos de Natal. Finalmente percebia qual era a terceira coisa necessária para salvar a Menina dos Fósforos e que só eu detinha: o amor pelos livros. O conhecimento de todos os contos que li, de todas as personagens que encontrei nos muitos volumes que na casa dos meus avós vão passando de geração em geração.
Analisei os títulos, observei os autores e recordei os enredos das histórias que ainda ali estavam. Desta vez, não esperei que um livro me caísse na cabeça. Agora eu sabia o que procurava. Quando o encontrei, abri-o e dei as boas-vindas à personagem que faltava:
— Olá, senhor Scrooge. Era mesmo de si que precisávamos!
Afinal, quem melhor do que o senhor Scrooge para garantir que nada faltaria à Menina dos Fósforos e a todas as crianças do mundo?
Como a minha avó gostava de me recordar, o milionário avarento criado por Charles Dickens tornava-se, no final da história, um exemplo de grande generosidade. Ou seja, mesmo aquilo de que precisávamos na nossa história.
E foi assim que descobri o superpoder dos livros das estantes dos meus avós. Com a ajuda das personagens que todos os natais me faziam companhia, percebi como as suas histórias são capazes de nos levar por mil aventuras, afastar solidões, concretizar sonhos e salvar vidas. Não só a vida da Menina dos Fósforos, mas a de cada um de nós.
É precisamente nesta magia que a Wook acredita, porque os livros são caminhos de uma vida, de muitas vidas. Independentemente da idade, há sempre um livro pronto a falar connosco. Basta acreditar e esperar que o encanto aconteça.