Em 2019 passaram 50 anos sobre a publicação (discreta) de um livro determinante para esfrangalhar o bom gosto e os bons modos da literatura portuguesa e dos seus afadigados tarefeiros. Chamou-se A Noite e o Riso e nunca mais parou de fazer eco na forma como se escreve em português, muita embora nem todos o oiçam e outros façam por não ouvi-lo. Sendo assim a editora D. Quixote colocou nas livrarias uma nova edição a marcar meio século desse “omãi qe dava pulos grãdes” e que um dia “pulô tantu qe saiu pêlo tôpu”.

Em Portugal não há tradição de se gostar de escritores “grãdes” que pulam tanto que saem pelo “tôpu” e talvez por isso a reedição passou despercebida, ou passaria não fora Vasco Pulido Valente, escrever no seu Diário (jornal Público) que achava Bragança um escritor menor. Manuel Luís Bragança, filho mais velho do escritor, não ficou satisfeito e afirma que “o problema de VPV é que Nuno Bragança lhe terá roubado Maria Cabral”, a atriz que foi casada com Pulido Valente.

A verdade, verdadinha, é que 2019 foi o ano Sophia e pouco mais e talvez Maria Belo, a psicanalista que também foi namorada de Nuno Bragança, tenha razão quando afirma que “ele nunca teve reconhecimento fora do seu círculo de amigos e pessoas atentas à literatura portuguesa, que eram e são raras porque preferimos todos ler escritores de outras línguas. Em 1969 eu já estava com o Nuno quando saiu A Noite e o Riso e não me lembro de ter acontecido nada de especial. Essa falta de reconhecimento magoou-o muito, porque não era só pelo livro, mas sobretudo por ele, era o não reconhecerem aquilo que ele mais queria ser, um escritor”.

Nuno Bragança fotografado por Gerard Castello-Lopes

Em setembro, Manuel Luís Bragança, que não vive em Lisboa, foi visitar a feira do livro promovida pela Presidência da República, nos jardins do Palácio de Belém, e onde brilham os escritores comprados a preços sublimes na feira de Frankfurt e que é preciso vender. Está visto que nessas faustosas mesas literárias não estava A Noite e o Riso, mesmo em ano de aniversário redondo. Manuel achou que talvez estivesse noutro sitio e perguntou ao empregado se não tinha o livro de Nuno Bragança. Mas o empregado confuso respondeu apenas: “Nuno Bragança? Não conheço. Nem sabia que tínhamos um escritor com esse nome”. Mas havia, houve e há um escritor chamado Nuno Bragança e uma pequena pérola, sem frases perfeitas, adjetivos encrostados à pinça, e imagens desenhadas a cinzel. Ele mesmo explica quem foi para poder ser quem queria ser:

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“Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me especializei na arte de estender os braços. Dia após dia os mais laboriosos, cansativos forcejos projectavam meus membros anteriores em-frentemente. E isto assim até que perdi as mãos de vista. Não que o meu sorriso fosse esgar, ou o meu gargalhar inexistente; mas uma certa palidez  no semblante geral denunciava (ao que parece) más possibilidades.” [ A Noite e o Riso]

Nas profundezas da cidade

Não é fácil rastrear a vida de Nuno Bragança, apesar de (supostamente) ele ter contado tudo nos quatro livros que deixou. Há ainda os diários que os filhos preferem não publicar, por haver neles “coisas sensíveis que podem magoar pessoas”, explica Manuel Bragança ao Observador. Uma coisa é certa: ele foi uma constelação desenhada sobre uma junção improvável de estrelas; o menino-milagre concebido depois de a mãe, que não conseguia engravidar, ir em peregrinação a Lourdes.

Nasceu a 12 de fevereiro de 1929 e estaria agora a fazer uns vetustos 91 anos. Passou a infância numa redoma criada pela mãe que não o deixava sair à rua sem ser de gola-alta com medo de resfriados e todas as doenças possíveis. Só recebia crianças no dia de aniversário, mas quando estas iam brincar para o jardim ele ficava invariavelmente em casa, a imitar as brincadeiras no lado de dentro da janela. A ida para um colégio na adolescência ditou o fim da submissão: descobriu o boxe, a noite boémia, as danceterias, o corpo feminino como o grande e primordial mistério do universo e as mulheres como senhoras de uma liberdade que ele invejava, descobriu a violência, a sexualidade e Zana, essa mulher-cidade, real e irreal que é, sem dúvida, uma das personagens femininas mais marcantes da literatura da segunda metade do século XX, a par com Alexandra Alpha de Cardoso Pires, o Maina Mendes de Maria Velho da Costa ou Sibila de Agustina.

A Noite e o Riso, edição de 2019, comemorativa dos 50 anos, D. Quixote, PVP: 15.90

A Noite e o Riso começa por ser um mergulho nas profundezas da cidade para ser um encontro como o o próprio corpo como uma coisa sua que ele submetia à violência do boxe, dos redutos marginais da cidade, do álcool. A noite de Nuno Bragança tem uma profundidade inesgotável e uma capacidade infinita de produzir realidades tão finas como papel, que infinitamente se rasga para dar a ver outra camada de si. A noite, tão presente afinal em todos os seus livros, sempre num equilíbrio precário entre os deuses e o tédio de parecer já ter de tudo aquilo, uma memória profunda inscrita no seu ADN.

Mas o seu grande e libertário embate será com a Língua Portuguesa. Um combate violento com recurso a ganchos, upper cuts, curvos, diretos. Bragança sabia que é pela linguagem manifesta e latente que uma ditadura se mantém e, portanto, só pode ser pela linguagem que ela há-de ruir. Essa é a grande ousadia e a grande revolução de A Noite e o Riso; Nuno Bragança libertou a língua portuguesa, tornou-a uma festa pagã onde os substantivos e adjetivos se transformam em verbos, os calões das margens encontram o linguajar das famílias nobres, o vernáculo solta-se com a fúria que lhe compete. Os diálogos são ágeis, a caneta não lhe dava negas à memória, a oralidade encontra a escrita e não recua perante ela.

“Estou avançando em território proibido. Cada palavra-passo afasta-me do meu silêncio, desses segredos contornados. Medo de dar de caras com as vísceras, topar o que de mim jaz vivo ou morto. Quem sabe se descobrir-me ao fim de contas morto mesmo, e incapaz (então) do fingimento em que teria acordado todas as manhãs, cuidando-me vivíssimo” [A Noite e o Riso]

O Crepúsculo dos deuses

Como havia a noite, havia o mar e Nuno Bragança gostava de fazer mergulho e pesca submarina, sendo mesmo o fundador do Centro Português das Atividades Subaquáticas. Nos anos em que estudou Direito conheceu Pedro Tamen, João Benard da Costa, foi co-fundador da revista O Tempo e o Modo onde escrevia sobretudo sobre cinema, outra das sua grandes paixões. É dele o argumento do filme Verdes Anos, de Paulo Rocha. Nos anos de faculdade escreveu e gravou a peça radiofónica A Morte da Perdiz, uma história de humor chocarreiro que não teve consequências.

Só em 1969, já com 40 anos, ele virá a escrever o seu primeiro livro (A Noite e o Riso), a que não chamaremos romance, porque esse género tão nobre não teria espaço para a petulância com que Nuno Bragança se ria de tudo e de todos, inclusive de si próprio, o “omãi qe saiu pêlo tôpo”. Neste ano já vivia em Paris e trabalhava na representação portuguesa na OCDE.Tinha uma relação com a psicanalista Maria Belo e a sua mulher, Maria Leonor (com tem tinha três filhos) morre devido a um cocktail de álcool e comprimidos. Apesar de estar ligado ao grupo dos chamados católicos progressistas e de ter sido militante no MAR (Movimento de Ação Revolucionária), por essa altura aproxima-se das Brigadas Revolucionárias de Isabel do Carmo e Carlos Antunes e trava amizade com Manuel Alegre e começa uma atividade clandestina que visava preparar um atentado contra a Pide. Esses anos contá-los-à sob a forma de romance em Directa, em 1977 e depois Square Tolstoi em 1981. Duas obras injustamente classificadas como “datadas”, como se aos livros se pudessem pudessem aplicar datas de validade idênticas às dos iogurtes.

Photomaton de Nuno Bragança na sua grande beleza, que sempre lhe granjeou muito sucesso junto das mulheres

Square Tolstoi, que será a sua obra derradeira, não é apenas um road book, a fazer lembrar esse road movie que é “In The Passenger”/”História de um Repórter”, de Antonioni. Mais uma vez Nuno Bragança usa a realidade como uma matéria cuja força pode ser inesgotável para os que sabem moldá-la. No eixo Turim-Paris-Lisboa há um homem interiormente destruído, que bebe demais, participa em orgias sexuais, trafica material explosivo, vive (mais uma vez) entre gente das margens e mulheres mortas (Zana morre e Moita está interiormente morta). Mas tudo isto filtrado pela ambiguidade que Bragança insufla às suas narrativas através da forma criativa como utilizava as palavras, as construções gramaticais. Toda a sua narrativa é construida através de pormenores surpreendentes que dão origem depois aos acontecimentos.

Manuel Bragança garante que tudo o que ele conta neste livro é verdade, inclusive a quantidade impossível de álcool que  a personagem/narrador/escritor ingeria. Manuel conta-nos ainda que uma vez Nuno Bragança e José Cardoso Pires tiveram uma acalorada discussão a ver qual dos dois bebia mais, sendo que cada um queria o título para si mesmo. Maria Belo também lembra os excessos de álcool, os dois internamentos num hospital psiquiátrico na Suíça, para desabituação alcoólica. “O Nuno era uma pessoa profundamente solitária, tinha várias vidas ao mesmo tempo, mas que não faziam pontes entre si. Nos últimos livros ele já tinha desistido de si mesmo e da escrita”, diz a psicanalista. Apesar de todas estas muitas vidas, nunca abandonou o catolicismo, embora, diz Maria, “a sua relação como catolicismo fosse mais cultural do que religiosa.”

Já o poeta Manuel Gusmão, num ensaio que escreveu sobre A Noite e o Riso e que foi incorporado como prefácio em algumas edições mais recentes da obra, fala do amor como a única forma que o escritor encontrou de cumprir esse desígnio do catolicismo que é “o encontro com o outro”. Na obra de Bragança “o amor é a forma extrema de crescimento de alguém, amor como destruição e renascimento, como desafio, desconhecimento e aventura”. Assim, todos os livros de Nuno Bragança são sobre a aprendizagem. A aprendizagem da passagem da vida e da morte pelo corpo concreto, através de uma vivência explosiva da sexualidade, mas também a aprendizagem da escrita: “Mais do que morrermos todos custa-me a dificuldade de dar forma escrita ao que acabei uma vez de rabiscar”, confessa o escritor. No final de Square Tolstoi quando desata imprecações contra a estátua silente do escritor russo, Nuno Bragança mostra que essa afinal era a única coisa que lhe importava: a escrita, mas que, por isso mesmo ele tinha que a interrogar e deixar-se interrogar por ela. O menino nascido na Casa de Lafões teria podido facilmente ser um escritor medíocre com muitos livros publicados, mas ele não era dos que exigiam pouco da realidade.

“Eu vim para escrever. Mas escrever porquê? (…) tu és uma adivinha. Revelas a chave nas palavras em que a escondes. Se cortas as palavras vai-se a chave de ti mesmo… Encostei a cabeça à Terra até que o meu ouvido assentou nela” [ Square Tolstoi]

Depois do 25 de Abril, Nuno Bragança junta-se ao teatro A Comuna, onde conhece a sua futura mulher, a atriz Madalena Pestana, com quem terá dois filhos. Nesses anos de ressaca revolucionária, escreve para o Jornal de Letras, apoia a candidatura  e o governo de Maria de Lourdes Pintassilgo. A novela Do Fim do Mundo será publicada postumamente, em 1990, embora ainda hoje não se saiba quando foi escrita. Ao contrário de camaradas revolucionários dos quais ele fez personagens, como Manuel Alegre, Nuno Bragança não fez carreira política, não ganhou prémios literários, embora um só livro lhe garanta um lugar de culto na nossa literatura. Morreu em 1985 devido a uma mistura de comprimidos e álcool. Os filhos negam ter sido suicídio. Maria Belo diz apenas: deixou-se morrer.

A sua obra completa está coligida pela D.Quixote, desde 2009.