Domingos Farinho, o professor da Faculdade de Direito de Lisboa que será o ghostwriter de José Sócrates, foi acusado pelo Ministério Público (MP) dos crimes de burla qualificada, abuso de poder e falsificação de documento. A sua mulher, a advogada Jane Kirby, está igualmente acusada do crime de falsificação em regime de co-autoria. Estão em causa pagamentos de cerca de 53.900 euros que terão sido feitos a Farinho entre janeiro e novembro de 2014 como alegada contrapartida por ter colaborado na elaboração tese de doutoramento de Ciência Política que José Sócrates nunca chegou a apresentar na conhecida faculdade francesa Science Po por ter sido detido em novembro de 2014. Farinho já tinha colaborado na elaboração da tese de mestrado, essa sim entregue.
Na prática, Farinho foi acusado de ter alegadamente enganado a Faculdade de Direito de Lisboa por ter violado o regime de exclusividade como professor universitário durante o ano de 2014.
O procurador Jorge Malhado, titular dos autos na 9.ª Secção do DIAP de Lisboa, não tem dúvidas de que Domingos Farinho praticou os crimes com uma “intensidade de dolo (…) elevada, dada a persistência com que o arguido atuou no tempo” e que o seu “grau de culpa é intenso”. Para o Ministério Público, o “grau de ilicitude dos factos é manifesto, dada a violação pelo arguido Domingos Farinho dos deveres deontológicos enquanto professor universitário, em prejuízo da dignidade e credibilidade que esta função merece junto da comunidade”. Mais: Farinho terá atuado em “prejuízo da relação de confiança laboral e académica com a direção da instituição pública de ensino superior [Faculdade de Direito de Lisboa]” e “em prejuízo de dinheiros públicos. Tudo com “intenções meramente materiais”, lê-se no despacho de acusação datado de 4 de dezembro de 2019 a que o Observador teve acesso após requerimento enviado aos autos.
É o desfecho de uma das certidões mais mediáticas da Operação Marquês, visto que uma das suspeitas originais do Ministério Público indicava que Farinho era o verdadeiro autor da tese de mestrado de Sócrates, logo do seu primeiro livro intitulado “A Confiança no Mundo — Sobre a Tortura em Democracia”.
Em declarações à SIC, Paula Vaz Freire, diretora da Faculdade de Direito de Lisboa, confirmou que Domingos Farinho continua a dar aulas na instituição mas adiantou que “a faculdade está a lançar mão, como já fez no passado” e há um “procedimento” a correr “para o apuramento dos factos”.
A faculdade tem estado a colaborar com o Ministério Público e constituiu-se assistente no processo. “Naturalmente, a preocupação da faculdade é acautelar a boa utilização dos dinheiros públicos e se, eventualmente, se vier a demonstrar alguma irregularidade, no sentido de ter havido um recebimento indevido, a constituição como assistente permite o ressarcimento à faculdade dessas importâncias recebidas de forma eventualmente indevida”, explicou.
A acusação ao casal Farinho/Kirby
Domingos Farinho assinou dois contratos de alegada consultadoria jurídica com a RMF Consulting – Gestão e Consultadoria Estratégica, Unipessoal, Lda, uma empresa de Rui Mão de Ferro, um colaborador de Carlos Santos Silva, o alegado testa-de-ferro de José Sócrates. Os dois contratos, um assinado em janeiro de 2013 diretamente com Farinho e o segundo concluído com Jane Kirby em novembro de 2013, só foram concretizados devido a um pedido de Sócrates dirigido a Santos Silva.
Apesar de os contratos visarem a prestação de serviços jurídicos — Farinho e Kirby são juristas —, a verdade é que os mesmos nunca terão sido prestados, de acordo com a investigação do Ministério Público. Quando foi ouvido como testemunha na fase de inquérito da Operação Marquês, o próprio Farinho admitiu, tal como o Observador noticiou então: “O trabalho que eu realmente prestei, que me foi pedido, foi que eu colaborasse com o eng. José Sócrates”.
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Pelos dois contratos, o casal Farinho/Kirby recebeu mais de 100 mil euros, mas apenas o segundo contrato está em causa na acusação deduzida no dia 4 de dezembro de 2019.
Depois de um primeiro contrato assinado em janeiro de 2013 com a RMF Consulting para Farinho prestar a Sócrates “colaboração na redação, sistematização e revisão da tese de mestrado a apresentar como conclusão de mestrado em Ciência Política pelo Institute D’Études Politiques de Paris”, foi assinado um segundo contrato a 1 de novembro de 2013 para a prestação do mesmo serviço mas agora na elaboração de uma tese de doutoramento.
Este novo contrato visava contornar uma questão laboral: Domingos Farinho ia passar a professor em regime de em dedicação exclusiva a partir de 1 de janeiro de 2014 e a lei impedia-o de prestar qualquer serviço remunerado a uma entidade pública e privada — impedimento que vigorou até 28 de fevereiro de 2016, altura em que Farinho deixou de ser professor em exclusividade. Por isso é que iria passar a receber a totalidade do salário de professor auxiliar, enquanto antes recebia apenas dois terços da remuneração.
Daí nasceu a necessidade de ser a sua mulher, Jane Kirby, a assinar esse segundo contrato com a RMF Consulting de Rui Mão de Ferro, para contornar a proibição legal de Farinho prestar outros serviços a não ser à Faculdade de Direito de Lisboa. O próprio Farinho aparecia nas escutas telefónicas realizadas a José Sócrates na Operação Marquês a perguntar se “existia algum inconveniente” se o novo contrato fosse assinado com a igualmente jurista Jane Kirby. Isto é, o académico e ex-assessor de Sócrates em São Bento ganhou consciência de que não podia receber outra remuneração que não fosse a da faculdade.
De acordo com a acusação de burla imputada pelo MP, Domingos Farinho ter-se-á apropriado assim de 10.639 euros — quantia que corresponde à diferença salarial que Farinho tinha como professor auxiliar em tempo parcial com a que passou a ter como professor auxiliar em dedicação exclusiva. “Em face da colaboração remunerada prestada a José Sócrates, o arguido Domingos Farinho recebeu indevidamente e fez seu” aquele montante, “que lhe foi entregue a título de vencimento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa”, lê-se na acusação.
Além desse valor, Jane Kirby recebeu ainda cinco mil euros mensais brutos da RMF Consulting por serviços de consultadoria jurídica que nunca terá prestado, entre janeiro e novembro de 2013. No total, o casal Farinho/Kirby recebera 53.900 euros brutos — o que corresponde à quantia líquida de 34.650 euros.
Domingos Farinho e a sua mulher foram igualmente acusados do crime de falsificação de documento, não só por o contrato de consultadoria jurídica assinado com a RMF Consulting não corresponder ao serviço efetivamente prestado, como também por as 11 faturas-recibo fiscais emitidas por Kirby “não corresponderem a serviços por ela efetivamente prestados” à empresa de Rui Mão de Ferro.
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Prescrição de falsificação de documento
Domingos Farinho e a sua mulher beneficiaram do arquivamento de parte dos factos que faziam parte da certidão original extraída da Operação Marquês. Está aqui em causa o primeiro contrato, assinado a 1 de fevereiro de 2013 pelo próprio Domingos Farinho com a RMF Consulting.
O procurador Jorge Malhado considerou que esse contrato, que estipula a prestação de serviços de consultadoria jurídica, também não correspondia à realidade, pois estava em causa “a prestação de serviços de colaboração na elaboração de uma tese de mestrado por parte de Domingos Farinho a José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa”. O mesmo acontecia com as nove faturas-recibo emitidas por Domingos Farinho entre 8 de janeiro de 2013 e 18 de setembro de 2013 sobre as quais recaía igualmente a suspeita de falsificação de documento.
Contudo, estes factos já prescreveram. De acordo com o despacho de encerramento de inquérito, os prazos de prescrição foram atingidos em janeiro de 2018 relativamente ao primeiro contrato.
O segundo contrato assinado com Jane Kirby também tinha uma suspeita de falsificação de documento, mas também este prescreveu a 1 de novembro de 2018.
Já no que diz respeito ao crime de fraude fiscal relativamente aos 53.900 euros que o casal Farinho/Kirby recebeu na sequência da assinatura do segundo contrato entre a RMF Consulting e Jane Kirby, o procurador titular dos autos concluiu que o mesmo não foi praticado pelos arguidos, pois tal valor foi declarado no IRS de 2013 e 2014 do casal. “Não ocorreu qualquer vantagem patrimonial ilegítima por via da prática dos aludidos factos, conforme informação da Autoridade Tributária”, lê-se no despacho de acusação.
Por que razão não foram acusados na Operação Marquês?
Recorde-se que Domingos Farinho e Jane Kirby foram ouvidos como testemunhas nos autos da Operação Marquês, não tendo sido acusados no processo principal por não ter ficado provado que o casal de juristas “tivesse atuado com conhecimento da origem ilícita dos fundos [da dupla Carlos Santos Silva/José Sócrates] e com intenção de que José Sócrates camuflasse tal facto e lograsse a reintrodução desses fundos na economia legítima”.
Já José Sócrates, Carlos Santos Silva e Rui Mão de Ferro foram acusados de um crime de falsificação de documento e de branqueamento de capitais devido a esta situação.