No seu recente e magnífico livro “The Big Goodbye”, sobre a génese e a rodagem de “Chinatown”, de Roman Polanski, Sam Wasson conta que o produtor Robert Evans, mesmo sendo grande amigo do realizador e de o ter resguardado e defendido das pressões dos executivos da Paramount antes, durante e depois das filmagens, nunca deixou de tentar convencer Polanski a injetar “mais romance” na relação entre as personagens de Jack Nicholson e Faye Dunaway, por achar a história demasiado fria e cínica (Polanski nunca cedeu, e ainda bem). Em “Sérgio”, o filme biográfico de Greg Barker sobre Sérgio Viera de Mello, o desaparecido diplomata brasileiro e Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, sucede exatamente o contrário. Há tanto romance, que quase não sobra espaço para o resto.

[Veja o “trailer” de “Sérgio”:]

Esta é a primeira ficção do realizador (baseada no livro “Chasing the Flame: One Man’s Fight to Save the World”), que em 2009 tinha já dedicado uma documentário a Vieira de Mello, também intitulado “Sérgio”. O filme, com Wagner Moura (que também produz) no papel principal, começa com o atentado à bomba da Al Qaeda em Bagdade, contra o quartel-general das Nações Unidas, a 19 de Agosto de 2003, que matou Vieira de Mello e mais 21 pessoas. E depois não pára de andar entre o presente e o passado, entre os esforços para tirar o diplomata, ainda vivo, dos escombros, e as recordações deste da sua vida passada em vários países do mundo em situação de conflito e crise humanitária, como foi o caso de Timor-Leste na transição do jugo da Indonésia para a independência.

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[Veja uma curta das Nações Unidas em homenagem a Sérgio Vieira de Mello:]

Os 34 anos de trabalho nas Nações Unidas do, ao que dizem, competentíssimo Vieira de Mello (falava-se nele como um forte sucessor de Kofi Annan no cargo de secretário-geral da instituição) são submetidos ao tratamento “Reader’s Digest” por Greg Barker, que o reduz a pequenas cápsulas da sua acção em prol dos refugiados no Cambodja pós-genocído comunista nos anos 90, e em Timor-Leste entre 1999 e 2002, a que se juntam meia-dúzia de cenas no Iraque invadido pelos EUA. A própria informação biográfica sobre Vieira de Mello é apenas telegráfica, e pela rama ficam também as relações difíceis com os seus dois filhos adolescentes, que viviam com a mãe em França após o divórcio dos pais, e o visitavam de vez em quando no Rio de Janeiro.

[Veja Wagner Moura falar sobre Vieira de Mello:]

O que interessa mesmo a Barker é o romance entre Vieira de Mello e a economista Carolina Larriera (Ana de Armas), que conheceu em Timor-Leste e que o acompanharia até à sua morte no atentado terrorista em Bagdade. E de tal forma o realizador insiste nesta tecla intimista , que o filme poderia ter como título alternativo “Sérgio-Um Homem Apaixonado”, ao retratar Vieira de Mello como um misto de James Bond dos direitos humanos e galã consumado. Se “Sérgio” já de si parece um anónimo e estandardizado “biopic” da vertente “inspiradora”, esta insistência na relação entre o biografado e a sua apaixonada acaba por o transformar numa insofrível e redundante piroseira.

[Veja uma cena do filme:]

Eis Sérgio e Carolina beijando-se à chuva em Timor-Leste; eis Sérgio a cozinhar a sua receita secreta de ovos estrelados para Carolina; eis a inevitável cena erótica do casal a fazer amor numa noite tórrida; eis Carolina chorando por Sérgio nos escombros do quartel-general das Nações Unidas após o atentado; eis Sérgio moribundo nos destroços pensando em Carolina e perguntando por ela. E nunca sentimos Wagner Moura muito à vontade no papel do bem nascido, cosmopolita, poliglota e muito carismático Vieira de Mello, como alguém que veste um fato que não está à sua medida e não pode deixar de transmitir algum desconforto.

Não sei se “Sérgio”, o documentário de 2009 de Greg Barker, é um bom filme no seu registo. Mas este homónimo mais ficcionado onde o coração do protagonista se sobrepõe à sua carreira, é um desastre em regra.

“Sérgio” já está disponível na Netflix