A partir de segunda-feira, quem entrar no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) vai deparar-se com um pequeno desenho, guardado numa vitrina. O esboço, que mostra a figura de Camões com um dos braços erguidos e outro para baixo, em jeito de súplica, foi feito por Domingos António de Sequeira, pintor responsável pela introdução do Romantismo em Portugal e protagonista de uma mediática campanha que, há uns anos, permitiu a aquisição de uma das suas obras pelo MNAA. A Adoração dos Magos está desde então no lugar certo, mas o mesmo não se pode dizer de A Morte de Camões, a pintura a que o esquisso corresponde. O quadro está perdido desde o século XIX e ninguém faz ideia onde para.

O estudo da figura de Luís de Camões para a pintura da sua morte foi a última peça a dar entrada no museu das Janelas Verdes, em Lisboa. O desenho em carvão e giz foi adquirido pela Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) em dezembro do ano passado, num leilão da Christie’s, em Paris. Fazia parte da coleção privada do pianista franco-suíço Alfred Cortot, que morreu em 1962, e foi a leilão com o título Homem velho sentado: retrato do poeta Luís Vaz de Camões e uma estimativa de preço que ia dos 1.000 aos 1.500 euros. O desenho não era conhecido dos especialistas portugueses. A autoria do esquisso foi identificada graças a uma inscrição manuscrita no seu verso, que diz “Estudo do quadro (Camões)”, que desde logo o identificou com a misteriosa obra de Domingos Sequeira.

Alexandra Markl, conservadora da coleção de desenhos do MNAA, adiantou ao Observador que foi um investigador que alertou o museu para a presença do esboço num leilão em Paris, possibilitando assim a sua compra. “Quando fizeram a ficha, perceberam que era um Sequeira, que era para esta pintura e classificaram-no”, afirmou a conservadora, descrevendo o quadro como “uma obra misteriosa, embora seja conhecida, porque foi uma pintura que ele fez e apresentou no Salon de 1824”, que marca o início do movimento romântico na pintura na Europa e, graças à presença de Domingos Sequeira, também em Portugal.

O esboço preparatório de Domingos Sequeira que foi adquirido no final do ano passado em Paris e que agora faz parte da coleção do Museu de Arte Antiga

A misteriosa morte de Camões

Domingos Sequeira pintou o quadro conhecido como A Morte de Camões ou Os últimos momentos de Camões durante uma das suas temporadas em Paris, talvez nos primeiros meses de 1824, altura em que anunciou numa carta ao cunhado, João Baptista Verde, que contava executar uma tela para exibir no Salon do Louvre desse ano. A 25 de agosto, quando o Salon abriu, a obra de Sequeira era uma das muitas que decoravam as paredes da exposição, onde participaram pintores como Delacroix ou Delaroche. Na cerimónia de entrega dos prémios, a 14 de janeiro do ano seguinte, Sequeira, que participou ainda com uma outra pintura também perdida, Repouso na fuga para o Egito, foi um dos artistas que recebeu das mãos do rei Carlos X uma das cem medalhas de ouro destinadas aos participantes que mais se destacaram.

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Segundo Alexandra Markl, o Salon de 1824 “tem uma importância fundamental, porque foi onde foi introduzido o Romantismo a nível europeu”, explicou a conservadora do MNAA, acrescentando que as obras expostas apresentavam “já temas muito românticos, à volta da morte, temas exóticos”, de que são exemplo O Massacre de Chios, de Eugène Delacroix, ou O Saque de Jerusalém pelos Romanos, de François Joseph Heim. “Habitualmente, é [no Salon de 1824] que se aponta, em termos de História de Arte, o arranque oficial do Romantismo. Essa pintura [de Domingos Sequeira] também surge nesse âmbito. Retrata os últimos momentos de Camões, uma temática um pouco mórbida, mais romântica.” É por essa razão que A Morte de Camões é considerada uma das obras precursoras do Romantismo europeu, mas também português. “No ano em que arranca o Romantismo, estamos lá. É uma pintura mítica por ter desaparecido e por ter estado neste arranque.”

Terminada a exposição no Louvre, Sequeira ofereceu a pintura a D. Pedro I, enviando-a para o Brasil, onde esteve “durante uns tempos” e onde acabou por desaparecer misteriosamente sem deixar rasto. A última notícia de A Morte de Camões é de 1850, data em que foi executada uma aguarela que mostra a sala de uma das filhas do imperador, Francisca de Bragança, princesa de Joinville, no Rio de Janeiro, e onde se vê o quadro pendurado por cima de um piano. Este desenho é a única imagem conhecida da pintura terminada, uma vez que, da mão de Domingos Sequeira, só se conhecem alguns estudos preparatórios. É por isso que “todas as peças que conseguirmos juntar, todos os desenhos, são fundamentais para compreendermos o pensamento por trás da pintura”.

A sala da princesa de Joinville no Rio de Janeiro, onde se vê a pintura de Domingos Sequeira por cima do piano. Desconhece-se o autor da aguarela

Até ao aparecimento da última aquisição do MNAA, conheciam-se pelo menos três esboços de A Morte de Camões. O mais completo pertence à coleção do museu das Janelas Verdes e mostra o poeta sentado na seu leito, com os dois braços levantados e o amigo sentado à sua frente. Existe um outro, mais parcelar, no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, e um terceiro, um estudo da roupa de cama de Camões, numa coleção privada. Tal como estes dois últimos, o recentemente adquirido também mostra apenas alguns pormenores do que viria a ser a obra final, mas não é por isso que deixa de ser importante para a reconstrução do processo de execução, sobretudo porque mostra Camões numa posição diferente.

“Este aqui é interessante porque Camões surge numa posição diferente. Na versão final, e no que vemos na aguarela, Camões está sentado em cima do seu catre, com as mãos para o ar, o que parece corresponder à celebre descrição da sua morte, um tema mais ou menos romântico, que coincide com a perda da independência [na sequência do desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir]. É exatamente isto, é ele a lamentar-se e a receber a noticia da anexação de Portugal por Espanha. Está o amigo ao lado, a ler, e ele está muito comovido, com as mãos para cima”, descreveu a conservadora da coleção de desenhos do MNAA, apontando que, no novo esquisso do museu, o poeta “só tem uma mão para cima e outra para baixo”.

O desenho preliminar de A Morte de Camões de Domingos Sequeira que já pertencia à coleção do Museu Nacional de Arte Antiga

“A posição é diferente e a figura aparece toda envolta numa serie de linhas, o que é muito estranho, porque, na outra, ele está num quarto. Aqui não, é uma coisa muito nebulosa.” Não se sabe o que Domingos Sequeira pretendeu atingir com o desenho a carvão, que vem deixar “mais pistas” em aberto, mas que permite “de certa maneira compôs um bocadinho o que se passou”. Mas é sempre possível avançar com algumas possibilidades: “A hipótese que ponho é a de que ainda estava só a pensar. [Neste esboço,] não localiza ainda geograficamente, põe só a posição das figuras. Ou então, uma hipótese mais radical, é a de ele ter começado por pensar não em pintar os últimos momentos de Camões, mas outro tema camoniano, como o naufrágio no Rio Mekong. [Este desenho seria então] ele a salvar o manuscrito [de Os Lusíadas], porque parece um bocadinho isso. Os traços parecem uma ondulação”.

Mas são tudo “hipóteses”, como salientou Alexandra Markl, possíveis graças a um pequeno desenho que poderá ser visto a partir de segunda-feira, data em que o Museu Nacional de Arte Antiga reabre depois de cerca de dois meses encerrado, na entrada do seu edifício. Mas só durante dois meses — devido à sua grande fragilidade, o Camões de Sequeira terá de regressar aos arquivos do MNAA, onde ficará à espera que uma nova exposição o faça novamente brilhar.