Bob Dylan deu uma entrevista. A novidade é essa, a notícia é essa, a surpresa está toda aí. Se há muito que Bob Dylan dar uma entrevista é coisa para chamar a atenção, tão difícil tem sido jornalistas, público (em muitos concertos, nem um boa noite) e até júris do prémio Nobel arrancarem-lhe palavras nos últimos anos, por estes dias as palavras de Bob Dylan ganham ainda mais relevância. É que fora o discurso (pré-escrito) de agradecimento do Nobel e fora uma entrevista publicada no seu site oficial, há muito que ninguém o ouvia publicamente.

Agora Bob Dylan tem um álbum novo a caminho, o primeiro de canções originais (por si compostas) desde Tempest, editado há oito anos. Mas talvez fosse arriscado supor que esta é mais uma entrevista promocional, que Bob Dylan a quis dar especificamente agora apenas por causa do disco. É demasiado esquivo e imprevisível para isso, pelo que o melhor é não tirar conclusões e ler a entrevista — em que Dylan trata o entrevistador Douglas Brinkley, que esclarece logo que já conversara com ele durante duas horas “há uns anos”, por Doug. “Eu e tu, Doug”.

O entrevistador fala do disco, Bob Dylan também. Falam das novas canções longuíssimas, meio fantasmagóricas, cheias de referências bíblicas e históricas, em que Dylan canta embalado pelas memórias de personagens centrais da vida americana e ocidental no último século. Mas os temas da conversa são muitos. O homicídio de George Floyd, afroamericano asfixiado por um joelho de um polícia, foi um deles. Tinha ocorrido no dia anterior e Dylan falou sobre o assunto: “Enojou-me sem fim ver o George ser torturado até à morte daquela maneira. Foi para lá de feio. Vamos esperar que a justiça chegue rápido para a família Floyd e para a nação”.

Outro tema inevitável era a pandemia do novo coronavírus, que deixou parte do mundo confinada por tempo determinado. Questionado sobre o assunto, deixou a sua achega: “Acho que é precursor de algo mais que está para vir. É uma invasão, por certo. (…) A arrogância extrema pode ter castigos desastrosos. Talvez estejamos à beira da destruição. Há muitas formas de se pensar sobre o vírus”.

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Todos querem ser Dylan. Bob só quer usar o chapéu

Com a entrevista, ficámos todos a saber que Bob Dylan não sabe bem que canções dos The Rolling Stones é que gostaria de ter escrito, mas até arrisca e vai bem nas escolhas: talvez a “Angie”, talvez a “Ventilator Blues”, “e que mais, deixa-me ver…”. Ah, lembrou-se de mais uma, “oh yeah”, a “Wild Horses”. E ficámos a saber que chorou recentemente, ao ver a peça “Girl From The North Country” da Broadway, que inclui a sua música mas que Dylan, esquivo há muito, quis ver “como espectador anónimo, não como alguém que tinha alguma coisa a ver com aquilo”.

De saúde, confirma que está bem aos 79 anos. Não desvenda truques para isso, diz que “a mente e o corpo andam de mão dada” e no caso dele tenta “andar nos eixos”, saudável, on a straight line, sem grandes desvios que lhe possam trazer problemas. Deixa palavras simpáticas para os nomes maiores, aqueles já canonizados, para a Ella Fitzgerald que o inspirou “como cantora”, para Oscar Peterson que o inspirou como pianista, para o tema “Ruby, My Dear” de Thelonious Monk, para “as coisas iniciais do Miles [Davis] na Capitol Records” e para os recém falecidos John Prine e Little Richard.

Little Richard é quem elogia mais, alguém com quem Dylan cresceu — e a sua reverência por gerações anteriores à sua, por quem lhe deu a banda sonora do crescimento, é mais do que óbvia —, “um grande cantor de gospel”, a quem o mundo do rock and roll não perdoou os caminhos musicais desviantes. Little Richard, alguém que põe ao lado de Sister Rosetta Tharpe, gente que “não consegue imaginar” que se tenha importado muito com a falta de reconhecimento devido, pessoas “de caráter elevado”, “genuínas”, “cheias de talento” e “que se conheciam e não balançavam consoante o que ouviam do exterior”.

E se a música de Bob Dylan não tivesse palavras?

Talvez seja gente em que também ele se reconheça, ele que atirou o puritanismo da folk acústica e politicamente mais incisiva (evidente nos seus propósitos e nas suas denúncias) às urtigas, que deu em cantor de folk-rural e campestre, que deu em novo cristão que fazia discos de gospel-rock, que deu em cantor de standards quando sempre lhe disseram que as canções podiam ser boas, mas cantor é que não era. Alguém que, como escreveu no livro de memórias “Crónicas Volume I” em tempo próprio, quando percebeu que queriam fazer dele um ícone de barro, uma figura conhecida e previsível nas intenções, fugiu em tempo certo, ferozmente independente e ferozmente imprevisível: “Não era porta-voz de nada nem de ninguém”.

Estará Bob Dylan por estes dias, a caminho dos oitentas, preocupado com a morte, a pensar na morte, pergunta-lhe também o entrevistador, adivinhamos que meio a medo? A resposta é sim e não, como é tantas vezes com Bob Dylan, autor de uma conferência de imprensa infame de tão jocosa nos dribles às perguntas. “Penso na morte da raça humana. A longa e estranha viagem do macaco nu. Não quero soar ligeiro, leve, mas a vida de toda a gente é tão transitória. Todos os seres humanos, não importa quão fortes ou poderosos sejam, são frágeis relativamente à morte. Penso isso em termos gerais, não de uma forma pessoal”.

Bob Dylan está do lado certo da história