Tudo começou por um pequeno tweet, quem sabe até uma graça a quem quase ninguém achou piada, mas daí em diante a polémica foi-se alimentando como uma bola de neve imparável. A mais recente foi esta semana, depois de J. K. Rowling ter assumido ter sido vítima de violência doméstica. O ex-marido português da escritora veio dizer que não foi bem assim, que não houve violência contínua, mas confirmou: “Dei uma estalada à JK e não estou arrependido.” E o The Sun fez uma capa com a frase.

Antes disso, há uma semana, J. K. Rowling chateou muita gente na internet e desta vez não foi por dizer que nunca tinha estado na livraria Lello. Na rede social Twitter, partilhou um artigo de opinião com o título “Criando um mundo mais igualitário no pós-Covid-19 para pessoas que menstruam”. E fez a piada: como é que se chamavam antigamente as pessoas que menstruam?

A polémica poderia ter ficado por ali, mas o mundo já não é bem o mesmo que era e que J. K. Rowling encantou  com Harry Potter. Hoje, mais do que nunca, um comentário polémico pode matar ou criar uma carreira mediática. As associações de defesa de direitos LGBTI indignaram-se: então só é mulher quem menstrua? E os transgénero em processo de transformação? E aqueles que nasceram homens, mas sentem-se mulheres?

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A semana foi longa para a escritora, que há-de ter notado certamente que até atores que protagonizaram no grande ecrã alguns dos seus grandes êxitos literários — Emma “Hermione Granger” Watson, Bonny “Ginny Weasley” Wright — vieram meter a colher no assunto e discordar da inventora da escola de magia e feitiçaria de Hogwarts. E nem um ensaio publicado já na quarta-feira no seu site oficial veio amainar a tensão online.

Depois das primeiras críticas ao tweet inicial, Rowling veio reforçar que o sexo importa, não é uma questão de somenos, posição que aliás é partilhada por alguns setores do movimento feminista: “Se o sexo não for real, a realidade vivida das mulheres pelo mundo é apagada. Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a possibilidade de muitos poderem discutir com sentido as suas vidas. Não é ódio dizer a verdade”, escreveu na rede social Twitter.

A polémica estava para durar, o tema tornou-se predominante (antes da pandemia escrevia-se “viral”) nas redes sociais e Rowling decidiu publicar um ensaio mais longo no seu site. A escritora tem nítidas objeções à intenção do Governo escocês em aligeirar os requisitos médicos e legais para a mudança de sexo — à semelhança do que já fizeram outros países no passado, inclusive Portugal — e escreveu mesmo:

Quando se abre as portas das casas de banho e dos balneários a qualquer homem que sinta ou acredite que é uma mulher — e, como disse, os certificados de confirmação de género podem agora ser dados sem qualquer necessidade de intervenções cirúrgicas ou hormonais —, então estamos a abrir a porta a que todo e qualquer homem que o queira possa entrar. Essa é a verdade, pura e dura.”

Se a ideia incomoda algumas associações e grupos de ativismo pelos direitos transexuais, que se queixam de que a suspeição possa contribuir para aumentar a insegurança em que as pessoas trans vivem diariamente (o alívio legal pode mesmo “oferecer proteção a predadores”, sugeriu a autora), mais surpreendente foi uma revelação feita por J. K. Rowling que apontou ter sido vítima de “violência doméstica” e “sobrevivente de agressões sexuais”. É também por o ter sido, reforçou, que tem reticências quanto ao que vê como ligeireza na permissão de conceder legalmente a quem nasceu homem uma identidade de mulher.

Às novas revelações, muitos ativistas e parte da internet reagiram com desagradado, temendo que a relação implícita estabelecida por Rowling entre homens que se sentem e querem tornar mulheres e homens violentos ou predadores sexuais seja mais uma acha numa fogueira que veem queimar desnecessariamente. Mas sobre este assunto também os tablóides britânicos tinham algo a dizer: para uma primeira página que alguns consideraram infame, o The Sun escolheu uma frase de uma entrevista ao ex-marido português da escritora, que disse: “Dei uma estalada à JK e não estou arrependido.”

Do lado dos críticos, mesmo sem o mencionar explicitamente, colocaram-se algumas das figuras que é difícil não associar a J. R. Rowling. A atriz Emma Watson, que entre muitos outros papéis na carreira interpretou Hermione Granger na saga Harry Potter, veio dizer que “as pessoas trans são o que dizem ser e merecem viver as suas vidas sem serem constantemente questionadas e sem terem de ouvir alguém dizer-lhes que não são o que dizem ser”.

Bonnie Wright, que fez de Ginny Weasley, não poderia ser mais sintética e clara: “As mulheres transgénero são mulheres. Vejo-vos [como são] e adoro-vos”. E Daniel Radcliffe, que interpretou o próprio Harry Potter, escreveu na página de uma organização sem fins lucrativos que combate o suicídio em jovens LGBTI, que “as mulheres transgénero são mulheres” e que “qualquer declaração em contrário apaga a identidade e dignidade das pessoas transgénero e vai contra todos os conselhos dados por associações profissionais de saúde que têm muito mais experiência e conhecimento sobre este assunto do que eu ou a a Jo [Rowling]”.

A polémica segue dentro de momentos.