Começou pela obsessão do Spotify com uma canção dela, passou pela formação de um super-grupo feminino no pico da febre com as garotas do indie-rock, houve um disco a meias com Connor Oberst, ele que foi o líder dos Bright Eyes, e quando demos conta estávamos nesta inesperada situação: ao segundo e muito aguardado disco, Punisher (acabado de lançar), Phoebe Bridgers tornou-se na musa das pessoas que nunca sabem o que querem.

É arriscado dizer isto mas talvez não estivéssemos nesta situação sem a existência de Spotify na era das redes sociais. O que algoritmos como o do Spotify (ou de qualquer rede social) procuram é manter-nos no seu próprio loop; para tal, o Spotify divisou uma estratégia que passa por nos dar música mesmo que não queiramos: se vamos à procura de uma canção, o Spotify continua a tocar o disco em que essa canção está. E quando esse disco acaba continua a tocar os restantes discos dessa pessoa. E quando já não sabe o que fazer, passa música aleatória.

Mas o que é que acontece quando tocamos uma canção de alguém que tem poucos discos, como era o caso, há um par de anos, de Lucy Dacus ou de Mitsky ou de Julia Jacklin? Bom, nesse caso, chegado ao fim o único disco de um artista, o Spotify entra em modo canções-relacionadas-com-o-que-acabámos-de-ouvir. E foi aí que “Motion Sickness” se infiltrou e começou a fazer de Bridgers um caso de sucesso.

[“Motion Sickness”:]

“Motion Sickness” era o segundo tema de Stranger in the Alps, o disco de estreia de uma desconhecida chamada Phoebe Bridgers, e era, em simultâneo, todo um programa: uma espécie de folk de guitarras indie arranjada com decoro (violinos, uma segunda linha de guitarra, coros) e uma inusitada capacidade de fazer de cada palavra um post-it para colocar na porta do frigorífico:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“I hate you for what you did
And I miss you like a little kid”

Eram estes os versos de abertura de “Motion Sickness” e eu já perdi a conta às centenas de vezes que alguém me os citou ou os vi citados em chats ou em conversa.

Foi o povo que se apaixonou por “Motion Sickness” e por isso o algoritmo a ia buscar tantas vezes; ou foi o algoritmo que tinha tão poucas hipóteses para “raparigas sensíveis + guitarra” que “Motion Sickness” se tornou uma opção inevitável? Nunca saberemos – mas três anos depois, “Motion Sickness” tem 36 milhões de escutas, um valor absurdo para uma rapariga que era uma absoluta desconhecida quando a canção chegou à plataforma.

Desconhecida, porém, com um dom: aquela voz, uma voz extraordinária porém difícil de definir. Phoebe Bridgers não possui uma daquelas vozes que estilhaçam janelas ao subir nem nunca desce aos fundilhos de um berro; mas o que aquele ciciar contém é a rara capacidade de encerrar uma imensidão emocional sem nunca precisar de recorrer ao excesso: Phoebe passa com uma facilidade danada da resignação à raiva, da paixão à desilusão, sempre pitch perfect.

Ouçam a admirável “ICU”, nona canção de Punisher, em que por cima de uma guitarra simples esvoaçam arranjos de piano e sintetizadores espaciais; a canção descreve o crush de Phoebe por alguém cuja mãe ela detesta. A dado momento ela chega a este ponto:

“I used to light you up
Now I can’t even get you
To play the drums
‘Cause I don’t know what I want
Until I fuck it up.”

[“ICU”:]

Foram versos destes que tornaram Phoebe a musa eleita daquele tipo de melómano/a sensível, aquele tipo de pessoa que lê livros e até conhece bons restaurantes, mas não sabe o que quer ou o que fazer da sua vida pessoal: o self-loathing constante de Phoebe ecoa nestas pessoas, que encontram naquela voz o conforto de uma identidade partilhada.

O que não significa que Phoebe seja um ser lacrimejante, eternamente abatida por uma suposta menoridade – ela também sabe ser cruel, como se comprova na letra de “Moon Song”, também do novo disco:

“We hate Tears in Heaven
But it’s sad that his baby died
And we fought about John Lennon
Until I cried
And then went to bed upset.”

[“Moon Song”:]

Os dois primeiros versos referem-se a Eric Clapton e são, bem, cruéis, mas de uma crueldade coloquial – sendo que uma das qualidades de Phoebe é inserir a violência emocional numa situação coloquial. Ela está disposta a arriscar mais que a maior parte dos compositores, a escavar mais aquela parte do cérebro em que pensamos coisas desagradáveis sobre nós ou sobre os outros. Quer dizer, quantas estrelas do indie rock conhecem que escrevam tweets da estirpe de “If eating ass is wrong I don’t want to be right”?

Uma boa parte do charme de Bridgers reside no acesso que ela tem ao seu lado negro, no qual nos revemos, mas, acima de tudo, na forma ciciada como ele canta esse lado negro. Não admira que o tenha, note-se: nascida em Pasadena, Los Angeles, Bridgers cresceu com uma mãe que tanto foi dona de casa como, depois do divórcio, teve uma variedade de empregos aleatórios antes de se tornar stand-up comedian. O pai, um carpinteiro especializado em sets de cinema e publicidade, era abusivo e alcoólico. Por ironia, foi graças ao pai que ela teve as primeiras oportunidades de ganhar dinheiro a cantar (em anúncios), guito que acabou por servir para pagar a gravação de Stranger In the Alps.

[“Kyoto”:]

O abuso deixa sempre as suas marcas e Bridgers, que agora tem 25 anos, não bebe nem fuma erva. Quando as Boygenius, a super-mini-banda que ela formou com Julien Baker e Lucy Dacus, andam em digressão, as meninas estão na cama às 11 e acordam às seis e meia da manhã. É, diz ela, uma forma de ter controlo sobre a sua vida – Bridgers tem pavor a perder o controlo.

Claro que, como todas as pessoas abusadas na infância, já o perdeu – e uma das vezes foi bem pública: no início da sua carreira Phoebe teve um envolvimento romântico com o músico Ryan Adams, com quem começara a colaborar. O ano passado uma série de mulheres denunciaram o comportamento abusivo de Adams (exigir sexo, berrar, ameaçar pessoas) e Phoebe confirmou aos media que essas denúncias correspondiam à verdade.

Quando a relação ocorreu, Phoebe tinha 20 anos e Ryan 40; ela estava à procura de alguém que lhe dissesse o que ser – e descobriu o que não queria ser: alguém submisso, que obedece a um homem. “Motion Sickness”, a tal canção, foi escrita sobre Ryan Adams; a dada altura ela canta “I faked it every time, but that’s all right” e não é certo o que aquele “it” é mas é uma afirmação brutal, em particular seguido daquele resignado “but that’s all right”.

[“I Know The End”:]

Agora com 25 anos ela já sabe o que não quer ser – e sabia também o que queria para Punisher: um disco mais variado, que fosse além da sua voz e da sua guitarra em forma de balada. É fácil perceber que o conseguiu: “Kyoto” é power-pop com flautinhas de encantar e um arranjo de trompete mais à frente; “Saviour Complex” até começa meia baladucha mas rapidamente se enche de violinos e coros; “I know the End” abre com órgão Hammond e de repente, entre trompetes, violinos e berros, podia ser uma canção dos Arcade Fire.

Punisher vai fazer de Phoebe Bridgers uma estrela – mas não lhe vai resolver os problemas que alimentam as canções que escreve. Apesar do seu estatuto, ela ainda faz psicoterapia – e há dias, enquanto estava no consultório, um autocarro foi contra o carro dela. O mundo é isto: tentamos arranjar as coisas de um lado e elas partem-se do outro.

Phoebe sentou-se no carro, ligou-o e voltou para casa. “[O carro] ainda anda, por isso que se lixe”. E esta é toda a filosofia que uma musa precisa para sobreviver numa selva de autocarros abusivos.