O restauro dos Painéis de São Vicente poderá não desvendar todos os seus enigmas, mas irá aproximá-los “o mais possível do original”, concluído em 1470 pelo pintor português Nuno Gonçalves, segundo a equipa que lidera o projeto.
O processo de restauro do mítico políptico ainda está no seu início, a decorrer à vista dos visitantes, desde 18 de maio, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa.
“Parece que não se passa nada, mas este momento é crucial” para o levantamento de informação já existente, e aquela que das pinturas se poderá retirar, mediante tecnologia muito sofisticada, explicou à agência Lusa a especialista em conservação e restauro do MNAA Susana Campos.
Embora acompanhe há 20 anos os Painéis de São Vicente, entre as centenas de obras de pintura do museu, Susana Campos nunca olhou para eles tão de perto ou demoradamente como agora, neste projeto que deverá durar pelo menos três anos.
“O objetivo é, essencialmente, a conservação do políptico. Vamos tentar recuperar o mais possível o original que o artista fez, mantendo a estabilidade e a conservação das obras, para que perdurem no tempo”, disse à Lusa a investigadora da área da pintura antiga.
Dentro de uma “casa” com enormes janelas, para continuarem a ser admiradas pelos visitantes, as seis pinturas classificadas de tesouro nacional estão agora sem molduras, de forma a que os especialistas possam observar toda a madeira pintada, incluindo o verso.
Uma equipa de três especialistas dedica-se diariamente a reunir documentação fotográfica de todo o processo, com vários tipos de recolha de imagem, usando luz normal, luz rasante, ultravioleta, radiografia, refletografia de infravermelhos, entre outras técnicas avançadas.
“Esta informação, e todo o material que estamos a reunir vai ajudar a perceber melhor a técnica usada pelo pintor, as intervenções que os painéis já sofreram e, assim, compreender melhor o estado em que estão atualmente”, disse a investigadora à Lusa.
Só com estes dados, a equipa poderá levantar questões e tomar decisões para os passos seguintes do trabalho de restauro desta obra maior da pintura europeia do século XV, que continua a intrigar apaixonados pela arte, e a desafiar teorias de historiadores sobre quem eram realmente, ou quem representavam, na época, as 57 figuras em redor da dupla figuração de São Vicente, dispostas neste retrato coletivo.
Susana Campos acredita que o levantamento exaustivo de informação, com exames aprofundados, laboratoriais, e uso de técnicas sofisticadas, com novos equipamentos como uma lupa binocular, a digitalização e a possibilidade de aumentar as imagens, vão revelar pormenores de grande auxílio ao restauro.
Num processo tão lento, moroso e detalhado, a investigadora acabou por desenvolver uma “intimidade especial” com as pinturas: “É preciso olhar a fundo, e só depois entender e interagir”, através dos tratamentos disponíveis para avançar na parte química da limpeza.
A equipa quer chegar a um equilibro: “É uma obra de conjunto, e queremos que, no fim, fique equilibrada e não aconteça o que vemos agora, em que as intervenções anteriores se começam a destacar em relação ao original. Quando observamos a obra, essas intervenções são evidentes”.
Os restauros anteriores nas pinturas realizadas sobre madeira de carvalho são dos principais problemas que os conservadores enfrentam neste projeto.
“Quando não há registos de como foram feitas intervenções anteriores, torna-se muito difícil tratar os materiais”, observou a especialista à Lusa, referindo que estas pinturas apresentam algumas zonas de lacuna, onde o original desapareceu completamente, devido a um desgaste ou dano pontual.
No passado, foram feitos “tratamentos demasiado agressivos que desgastaram a camada cromática”, apontou, sobre o histórico de intervenções conhecidas e desconhecidas efetuadas nos painéis.
Descoberto no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Alfama, Lisboa, em 1882, o políptico foi alvo de um grande restauro pela mão de Luciano Freire, em 1909 e 1910, e outro, já nos anos 1950, por um seu aprendiz, Fernando Mardel.
“Estas últimas intervenções sabemos que foram cuidadosas”, avaliou Susana Campos sobre o trabalho do pintor Luciano Freire, responsável pelo restauro da maioria da pintura portuguesa antiga que se encontra no acervo do MNAA.
O problema são as anteriores, algumas delas referenciadas, mas com muito pouca informação, outras desconhecidas, mas que deixaram marcas.
Depois da fase dos exames técnicos e análises químicas, a equipa de três restauradores responsável pelo projeto irá retirar as eventuais várias camadas de verniz acumuladas.
“Nessa altura, poderemos vir a descobrir pormenores que atualmente não se veem, as cores originais vão revelar-se, e a pintura ficará mais transparente e luminosa”, prevê a conservadora.
Deste longo processo, os investigadores esperam que se revelem aspetos do trabalho do pintor régio de Afonso V, danos e outras marcas que irão contribuir para contar a história dos painéis.
“Vamos tentar minimizar o mais possível essas intervenções anteriores para ficar em destaque o que o artista pintou originalmente”, salientou a responsável à Lusa, sobre o labor que espera a equipa, à qual se juntarão parceiros da Bélgica e de Itália, envolvidos no projeto, mas que ainda não chegaram, devido às restrições das viagens, determinadas pela pandemia da covid-19.
Uma grande diferença no restauro em curso, comparativamente aos anteriores, é a consciência para selecionar materiais “estáveis e reversíveis, compatíveis com os originais”, de forma a que, no futuro, possam ser intervencionados mais facilmente, com técnicas ainda mais avançadas.
“Sabe-se ainda pouco da obra, mas, com este restauro, vamos ficar com mais certezas do ponto de vista científico”, estima a conservadora do MNAA. A equipa de conservação e restauro deste projeto é ainda constituída por Teresa Serra e Moura e Rita Oliveira.