José Nando, assim conhecido antes de se lançar como José Pinhal, podia ser mais um entre muitos nomes que acabaram encaixotados nos arquivos das pequenas editoras de música popular dos anos 80. Mas umas cassetes perdidas num apartamento do Porto, um melómano que começou a rodar músicas como “Tu És A Que Eu Quero” (Tu Não Prendas O Cabelo) em festas de nicho, uma banda nascida para prestar tributo ao músico de bigode farto e um produtor de audiovisual com um documentário pronto a estrear no IndieLisboa (passa esta sexta-feira, pelas 19h00, no Cinema São Jorge) ditaram o renascimento de José Pinhal.

No calor da noite

São 16h30 de terça-feira e a equipa do Leixões treina no campo d’Os Lusitanos de Santa Cruz do Bispo. António Santos aparece no café do clube que joga nas distritais do Porto, como é seu costume, mais para trocar duas de letra ao balcão com os amigos do que para ver a pré-época da equipa leixonense, vizinha de concelho. “Ele era meu primo”, solta num ápice assim que o nome de José Pinhal é mencionado, “mas não jogava à bola, até porque não tinha uma perna”, deixa escapar com ironia.

Já sentado numa mesa do café, com os seus 64 anos a rebobinarem na cabeça, António pára a fita nos tempos da Flor da Mocidade, o coletivo que “existia aqui ao lado” e onde José Pinhal, então apenas conhecido como José Nando, começou a vida artística, “já lá vão 36 ou 37 anos”. “Ele era uma pessoa muito fixe, muito divertida”. Cantava, segundo António, músicas que as pessoas chamavam “da noite” e, talvez por isso, grande parte da carreira de José Pinhal se tenha passado em boates noturnas, “para surpresa da família”: “mas quando se é jovem e se toma uma decisão destas, não há nada a fazer”, justifica num sorriso malandro de indisfarçável simpatia.

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António Santos, primo de José Pinhal © DR

Afinal, António Sousa sabe do que fala. Também ele era um profissional da noite: “trabalhei no Dancing Macau, em Matosinhos, que fica ali como quem vai para o mercado, na curva do metro”. De 15 em 15 dias havia sempre um artista que se apresentava naquele palco, entre “os shows de strip e essas coisas, sabe como é?”, e para seu pasmo, houve certa noite em que o artista convidado era nada mais nada menos do que o seu primo. Ali, de bigodaça frondosa e fato branco, como era seu apanágio, cantou uma, duas, três cantigas “para aquela gente da noite” e, findada a atuação, ficou-se para um copo. O número repetiu-se no Granada, no Tamariz, no Calor da Noite ou na Taberna do Infante, em tantas outras casas do norte do país com palcos espelhados, varões do chão ao teto e um misto de whiskey e Old Spice a carregar o ar quente.

Até que o dia 7 de abril de 1993 chegou e, concluída uma dessas atuações, “lá para os lados da Póvoa ou de Vila do Conde”, o carro que José Pinhal conduzia madrugada fora a caminho de casa embateu contra outro veículo, no lugar da Telheira, perto do aeroporto, vitimando o cantor de Santa Cruz do Bispo. Tinha 41 anos. “Foi um desgosto enorme”.

(Um vídeo com atuação de José Pinhal num clube noturno dos anos 80. Uma pausa obrigatória no minuto 9, quando o garçon começa a despejar espumante para um frapé, em palco, enquanto Pinhal canta)

A Vida Dura Muito Pouco

“A vida de José Pinhal é trágica em todos os aspetos”, desvenda-nos Dinis Leal Machado, o realizador do documentário “A Vida Dura Muito Pouco” que será exibido no dia 28 de agosto no Indie Lisboa. Não obstante, para brincar José Pinhal era sempre o primeiro, parafraseando o tema que dá nome ao filme. “A letra diz bem com a careta, ou seja, a pessoa que se ouvia nas músicas foi a pessoa que encontrei quando comecei a fazer o documentário”, confere Dinis, relembrando uma das brincadeiras preferidas do cantor: “ele foi para a tropa muito novo e perdeu uma perna. Há um mito à volta disso: por um lado contaram-nos que foi um acidente, por outro, que ele deu um tiro na perna para se vir embora de Angola”. Independentemente da veracidade de uma ou de outra versão, José Pinhal não desperdiçava um bom motivo para rodar a prótese ao contrário e de, com um pé virado a norte e outro a sul, se rir da desgraça.

(O trailer do documentário “A Vida Dura Muito Pouco”)

Até porque foi essa desgraça que o empurrou em definitivo para a música. Não podendo mais trabalhar na indústria metalúrgica e com uma pensão de invalidez no bolso, José Pinhal começa a picar o ponto com regularidade nas festas e romarias populares, durante o verão, e nas casas da noite, durante o inverno. Os frutos não tardaram a surgir: em 1979 apresenta o single Infância com o qual conquista o 1º Festival da Canção do Norte e em 1984 lança a primeira de três cassetes pela editora Nova Força, de São João da Madeira. “Estamos a falar de uma editora que era numa garagem e que tinha a força do seu fundador, Manuel Augusto. Basicamente a editora era aquele homem. Ele distribuía dentro de um circuito bastante reduzido, muitas vezes em mão. Ia a muitas feiras, era um vendedor viajante”.

Mito urbano

Para José Pinhal, o mais importante era que “o povo” – ou “a minha gente”, como referia com humildade – gostasse das suas músicas. “Fico vaidoso quando uma cassete minha esgota nas feiras”, comentou em entrevista à Rádio local Paralelo, com voz contida e discreta numa postura que apanha despercebido qualquer fã. É que em palco, o artista matosinhense cuspia toda a sua paixão como se o precipício estivesse ao virar de cada um dos seus temas. Não escondia o sotaque, a garra, a desafinação que é imediatamente perdoada no ataque dos refrões, nem a admiração pela música cigana – inspiração óbvia para o seu outfit de fio e pulseira de ouro sobre o fato branco e a camisa negra.

Capa do álbum “Infância, de José Pinhal

Todos estes elementos juntos fazem com que José Pinhal seja “naturalmente contagiante”, admite com genuína admiração Dinis Machado, que ficou “estupefacto” logo na primeira vez que o ouviu, cortesia de um amigo de Gondomar que disseminou as músicas pela turma inteira de Tecnologia da Comunicação Audiovisual, da Escola Superior de Media Artes e Design do Porto, corria o ano de 2014. A epifania atiçou-lhe a curiosidade e, ao lado do produtor Diogo V. Machado, pegou na câmara e partiu à descoberta: “queria perceber quem era este homem, porque apenas se sabia uma ou duas coisas sobre a vida dele.” Uma das coisas que chamou logo a atenção de Dinis foi um artigo de 2008 encontrado no blog Coisas que Fascinam, da autoria de Nelson Gomes, e que rezava assim:

“Descoberto em casa de uns amigos, José Pinhal é um ilustre e famoso desconhecido. Circula em pequenas elites informadas e é a nova coqueluche de serões animados. Pesquisar na net o nome de José Pinhal não devolve informações. Quem é? Quem foi? Este disco foi gravado quando? Por que nunca viu a luz do dia? Nada. A cópia que gentilmente me ofereceram vinha acompanhada de uma informação: isto é de uma cassete que foi encontrada num lixo de um estúdio. Mito urbano? Não sei.”

“O Nelson Gomes, nesse artigo, basicamente oferece alvíssaras a quem tiver respostas sobre José Pinhal. Aquilo era um convite à pesquisa e nós aceitámo-lo.”

As dificuldades de um artista nortenho em singrar em Lisboa

Nesse mesmo texto, faz-se um relato sobre a experiência de ouvir pela primeira vez José Pinhal, algo que poder-se-ia resumir ao título do documentário “A Vida Dura Muito Pouco”: “a obra que ele construiu é com base nesta filosofia, de aproveitar a vida enquanto é tempo”. Mas não é só a mensagem e o sentimento que põe nas suas interpretações que cativam até o ouvido e coração mais duros. A escolha das músicas é por si só muito peculiar. “Neste mundo da música popular dos anos 70 e 80 havia uma indústria de versões muito comum. Ele era um cantor de versões, mas a maioria das músicas que ele escolhia não eram muito conhecidas. As pessoas até acham que são inéditas dele, mas não são.”

Os principais alvos de José Pinhal eram as músicas de Chiquetete, cantor flamenco da Andaluzia, do guitarrista Paco Cepero, que acompanhou grandes nomes flamencos como Camarón de la Isla, da voz romântica de Dyango, que derreteu corações um pouco por todo o universo hispânico e, em Portugal, de José Cid, de quem fez uma versão de Magia.  “Eram escolhas um bocadinho exóticas, digamos assim, e isso, aliado à mistura de géneros, era o que o distinguia dos outros artistas”.

(Magia, José Pinhal)

Contudo, o exotismo não foi suficiente para José Pinhal conseguir brilhar na primeira linha dos cantores populares portugueses dos anos 80. “Ele não era propriamente um desconhecido no mundo popular, mas também não era um cabeça de cartaz”, aponta Dinis Machado, recordando que o cantor matosinhense chegou a fazer algumas temporadas em Espanha e mesmo em Lisboa. Na opinião do realizador de “A Vida Dura Muito Pouco”, a principal razão para José Pinhal nunca ter atingido o grande público foi a de nunca ter editado em vinil (exceção ao primeiro single, “Infância”): “o facto de ter tido só cassetes dificultou bastante o crescimento dele. Na época, só o vinil podia passar nas rádios. A editora dele, apesar de tudo, era pequena e o raio de influência era bastante curto, por isso não tinha os meios de comunicação necessários para o sucesso, como levar um artista à televisão”.

Portanto, as esperanças de José Pinhal não eram as de chegar a cassete de prata ou ouro, “isso não”, comenta realisticamente na entrevista de antevisão do quarto volume, que nunca chegou a ser editado por causa da sua morte prematura. “As cantigas que eu tenho é para eu trabalhar para o povo gostar”.

O fenómeno digital

O povo acordou no virar do século e o grande messias desse despertar chama-se Paulo Cunha Martins. “São coisas que acontecem por mero acaso”, diz-nos num final de tarde soalheiro do Porto, sentado na esplanada do Aduela com o master do volume 2 de José Pinhal a rodar nos seus auscultadores: “ora ouve”, atira entusiasmado, “consegues apanhar tudo”: do coro de metais ao ritmo das congas, passando pelos sintetizadores tão marcados dos anos 80 e pela voz ora em tom maroto, como em Tua Mulher, “Porque somos tão amigos / Com verdade que te digo / Se não fosse tua mulher era minha mulher”, ora numa poderosa vibração descente a berrar CIGA-A-A-A-A-A-A-A-A-A-A-A-NOS. “A letra, a cadência, a forma de gravar cheia de paixão”, tudo para Paulo Cunha Martins contribui para o cocktail explosivo que é ser-se apanhado de surpresa pela música de José Pinhal, um baque que nos faz soltar um atordoado “mas que merda é esta?”.

(Ciganos, José Pinhal)

Para o fotógrafo de 39 anos esse momento deu-se em 2000. O irmão tinha então comprado uma casa nas traseiras do famoso Bufete Fase, santuário das francesinhas no Porto, que era povoada por cassetes de todo o género. “Aquilo era o antigo escritório do Cipriano Costa”, empresário do mundo dos espetáculos que chegou a agenciar digressões que tinham no mesmo cartaz os nomes de Herman José, Ana Bola e, em letras mais pequenas, de José Pinhal.

As cassetes do então praticamente desconhecido intérprete de Matosinhos foram encontradas no armário da cozinha: “achei piada e fiquei com elas” diz Paulo com aquela naturalidade de colecionador nato que não perde uma oportunidade de ir à Feira da Vandoma para comprar às cegas cestas carregadas de música portuguesa que depois entram nos seus sets “Paulo Cunha Martins apresenta Rádio Popular”. Antes de José Pinhal entrar num desses curiosos sets, as cassetes rodaram em tudo o que era autorrádio dos amigos de Paulo, “o pessoal começou a curtir e a achar fixe”.

Temas como Porém Não Posso, em que o protagonista morre de amores por uma mulher a quem não pode dar carinhos, Tu És a Que Eu Quero, cavalgada apaixonada de um homem que pede à sua amada para não prender o cabelo, pois te fica muito bem | quando nele dá o vento, ou Gitaaaaaano soy, grito que José Pinhal pede emprestado a Chiquetete e na qual se atira com tal ardor que, por momentos, somos levados a crer que Pinhal partilha o mesmo sangue e as mesmas raízes que a estrela andaluz, fizeram furor imediato no mundo digital. “O grande salto disto tudo foi quando digitalizei as músicas. Devo ter passado os ficheiros, em CD ROM, a cinco pessoas no máximo e aquilo gerou um fenómeno.”

(Tu És a Que Eu Quero, José Pinhal)

Post Mortem Experience: uma homenagem a José Pinhal

As festas em Belas Artes, onde havia “muita troca de ficheiros”, lembra Paulo, foram dos primeiros contatos de José Pinhal com o público, uma gota que viria a formar uma torrente de entusiastas e que acabou por desaguar numa banda, de carne e osso. “Eu conheci o José Pinhal através do Luís Severo”, conta João Sarnadas, rosto do coletivo de artistas Favela Discos, do melancólico projeto Coelho Radioativo e guitarrista da banda José Pinhal Post Mortem Experience. “Em 2016 já tinha mostrado José Pinhal aos meus amigos da Favela e nessa altura já toda a gente gostava muito daquilo. A mim sempre me interessou esse estilo de cantor romântico, meio decadente, meio estranho e misterioso. E então decidimos fazer a banda”.

O propósito inicial era o de tocar na festa “O João Faz Anos”, que aconteceu no já extinto Cave 45, mas a pujança do concerto abriu portas para novas atuações. “Quando fizemos o concerto foi uma festarola muito divertida. Apercebemo-nos de que havia um culto de há dez anos por parte do pessoal de Belas Artes e que no Porto já algumas pessoas conheciam José Pinhal, como por exemplo o Paulo [Cunha Martins] que foi à festa. Por outro lado, as pessoas que não conheciam, aderiram logo”.

(vídeo da festa O João Faz Anos, com os José Pinhal Post-Mortem Experience)

Uma das apresentações mais épicas dos José Pinhal Post Mortem Experience, que tem Bruno de Seda como vocalista – ele que enverga um bigode farfalhudo que faria emocionar esse áureo José Pinhal do tempo das boates – aconteceu no São João de 2018, no Porto. Tocaram num camião-palco, cenário que condiz com as inigualáveis romarias populares que calcorreiam o nosso país de lés a lés no verão, e provocaram a euforia numa audiência repleta de foliões que iam dos 8 aos 80. “Eu nunca dei concertos tão divertidos como os do José Pinhal, porque conseguimos tocar em públicos completamente diferentes. Nesse São João até ficámos sem perceber se as pessoas já conheciam ou não José Pinhal, porque foi muito efusivo.”

(vídeo da atuação no São João)

Eventualmente uma amiga foi ter com João para lhe dizer que apanhou na plateia um comentário de um senhor, confesso admirador e contemporâneo de José Pinhal. Mais tarde seria José Malhoa a desabafar as suas saudades do músico matosinhense numa mensagem enviada nas redes sociais, “acho que nem tinha percebido muito bem que ele tinha falecido”.

No futuro esperam-se mais concertos catárticos da banda, que já arrasou fins de tarde no CCOP (Círculo Católico Dos Operários Do Porto) e serões na sede do Praça da Alegria Futebol Clube. O objetivo disto tudo, aponta Sarnadas, é “respeitar a memória de José Pinhal”: “´já nos perguntaram por que é que não fazíamos um disco, mas isso não faz sentido para nós. Não queremos fazer disto o nosso ganha pão, queremos que seja uma cena com respeito.”

(Concerto dos José Pinhal Post Mortem Experience na sede do Praça da Alegria Futebol Clube, no Porto)

Por seu lado, Paulo Cunha Martins tem na calha a realização de videoclips, “com coisas da internet”, para os masters do volume 1, 2 e 3 que foram recuperados dos caixotes da editora Nova Força. E Dinis Machado só quer que as pessoas, depois de verem o documentário “A Vida Dura Muito Pouco”, fiquem de facto a conhecer “este grande artista da música portuguesa” que ficou esquecido na história: “se as duas cassetes não tivessem sido encontradas, se calhar nada disto teria acontecido”. A vida de José Pinhal durou muito pouco, mas há quem seja feliz – com ou sem cantigas, mulheres e vinho – a fazer-lhe a festa e a louvá-lo como imortal. Fica a promessa no ar da reedição da sua obra completa.