Título: Rapariga, Mulher, Outra
Autor: Bernardine Evaristo
Editora: Elsinore
Ano da Edição: setembro de 2020
Páginas: 480
Preço: 21,98€
Em 2019, o impensável aconteceu: o Booker Prize foi não para uma, mas para duas obras de ficção. As autoras não podiam ser mais diferentes — Margaret Atwood, de 79 anos, canadiana e branca; Bernardine Evaristo, de 60 anos, britânica de origem nigeriana e negra. A uni-las estavam dois romances que, apesar de descreverem universos absolutamente distintos, tinham em comum o tema que tratavam — os direitos das mulheres e o direito à diversidade. Apesar de irregular, quando observada mais de perto, a atribuição do Booker a estes dois livros e a estas duas autoras fez todo o sentido.
Ao contrário de Os Testamentos, o regresso de Atwood ao universo distópico de Gilead, o romance de Evaristo, Rapariga, Mulher, Outra, pretende ser um retrato do mundo real, mais especificamente da sociedade britânica atual, que surge apresentada não num vácuo temporal, mas dentro de um contexto histórico que permite percebê-la (mas não necessariamente compreendê-la). Este contexto passa obrigatoriamente pelo império britânico e pelo seu legado — por um lado, a multiculturalidade das ruas de Londres, cidade onde a maioria da ação compreensivelmente se passa, e por outro a agressividade e o racismo contra os imigrantes.
As contradições deste presente, em que passado e futuro entram em choque, é personificado pelas personagens de Rapariga, Mulher, Outra, maioritariamente mulheres negras e filhas de imigrantes que se mudaram para o Reino Unido à procura de uma vida melhor. Cada uma tem o seu capítulo e cada uma tem a sua a sua voz. Juntas, em conjunto com as suas famílias e redes de amigos e conhecidos, formam um intrincado e interligado quadro social, que se pretende realista e multifacetado, e que serve para expor os vários preconceitos que envenenam a sociedade britânica. Porque, apesar de se focar na questão do racismo, sobretudo contra as mulheres negras, o romance não é alheio a outros problemas sociais, como o machismo, a homofobia, a violência doméstica ou o preconceito social.
A personagem principal, aquela em direção à qual todas as outras convergem, é Amma, uma dramaturga negra e lésbica que após uma longa carreira de parcos sucessos consegue estrear uma peça no National Theatre, em Londres, sob uma retumbante chuva de aplausos. Com um elenco composto integralmente por mulheres negras, A Última Amazona do Daomé quer chamar a atenção do mainstream para questões que sempre foram caras a Amma — o feminismo e a defesa dos direitos das mulheres negras. A personagem é inspirada na própria Bernardine Evaristo que, nos anos 80, fundou no Reino Unido a primeira companhia de atrizes negras — a Theatre of Black Women. No livro, Emma também cria a sua própria companhia, a Bush Women Theatre Company, com a melhor amiga, Dominique, posteriormente vítima de violência psicológica por parte da companheira abusiva, Nzinga, de quem se vê obrigada a fugir.
Dominique é totalmente diferente de Shirley, outra amiga de longa data de Amma. Filha de imigrantes caribenhos, Shirley é professora de História numa escola secundária onde a população escolar vem sobretudo de famílias carenciadas. Após anos de trabalho, o entusiasmo inicial (Shirley sonhava mudar a vida dos alunos, tal como conseguiu mudar a sua, inspirando-lhes o gosto pela História) dá lugar a uma frustração sem fim. O aprumo com que se vestia para as aulas transforma-se em desleixo; a boa disposição em sarcasmo. Apesar de infeliz, Shirley não muda de escola ou de profissão. Presa à estabilidade de um dia a dia que conhece de trás para a frente, não arrisca. Já Dominique, depois de ter sido abusada e enganada por Nzinga, decide refazer a sua vida nos Estados Unidos da América, para a onde a companheira a levou, alcançando o sucesso.
Abertamente feminista, Rapariga, Mulher, Outra não é uma obra fechada — dentro do seu feminismo, existem muitos feminismos, teorias e abordagens diferentes que, tal como a multiplicidade das suas personagens, recorda-nos que o mundo não tem uma só cor. O feminismo de Dominique, uma ativista da velha guarda que é atacada por Morgan, uma pessoa com identidade não-binária mais jovem do que ela, devido a um festival que organiza em Los Angeles, não é necessariamente o mesmo de Yazz, a sua jovem afilhada, filha de Amma. Isso faz com que o livro seja profundamente informativo e educativo.
O racismo ou o machismo podem ser temas pesados, mas a leitura de Rapariga, Mulher, Outra faz-se de forma fluida. O discurso oralizado contribui para isso, assim como as histórias credíveis, que agarram. Outro ponto a favor é a mestria com que a autora soube contrabalançar momentos de grande tensão e violência, de que é exemplo a violação coletiva de Carole, ex-aluna de Shirley, com momentos bem humorados.
Independentemente da origem ou percurso pessoal, há uma coisa que as 12 personagens do romance têm em comum — uma necessidade de afirmação. Todas estão, de uma forma ou de outra, à procura de um lugar seu, onde podem ser elas próprias. Morgan descobriu esse lugar com a ajuda de Bibi, a companheira transexual que encontrou quando estava a tentar encontrar-se a si próprio; Carole renegou às suas origens nigerianas para se integrar num mundo de homens brancos, o que muito desgostou a sua mãe, Bummi; já Penelope, para quem Bummi trabalha como empregada doméstica, a única branca da história, faz as pazes consigo e com o mundo quando descobre a sua mãe biológica, Hattie, e que esta é de origem africana. É da boca da professora de Literatura Inglesa que saem as palavras que podem servir para resumir Rapariga, Mulher, Outra: “É fácil esquecer que a Inglaterra é feita de muitas Inglaterras”. No mundo, cabem muitos mundos.
O romance da anglo-nigeriana Bernardine Evaristo é um retrato da sociedade britânica atual, uma reflexão sobre o seu passado e um olhar mais ou menos esperançoso sobre o futuro, nas mãos de uma nova geração que quer e que luta por um mundo mais igualitário. Desmascarando preconceitos, Evaristo mostra como noções conservadoras e mal informadas sobre raça, classe social, género ou sexualidade podem minar a forma como nos entendemos — ou devemos entender — uns aos outros.
Numa altura em que os direitos das minorias ocupam um lugar central na discussão pública, Rapariga, Mulher, Outra é uma leitura essencial e muito esclarecedora acerca da maravilhosa diversidade do mundo, da busca pela verdadeira identidade e do direito inquestionável a tê-la.