Fernando Pessoa fez do seu heterónimo Ricardo Reis um poeta e médico que não exercia, um latinista, semi-helenista e um monárquico de tal forma convicto que se exilou no Brasil em 1919, após o falhanço da revolta da Monarquia do Norte. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, agora adaptado ao cinema por João Botelho, há uma cena em que Reis (interpretado pelo ator brasileiro Chico Diaz) deixa bem claras as suas ideias políticas, dizendo aos comensais com quem partilha a mesa do jantar, um notário de Coimbra e a sua filha, ser “monárquico, anti-democrático e anti-socialista”.

O heterónimo de Pessoa, que Saramago transforma em protagonista da obra por aquele nunca ter indicado a data da sua morte, regressa a Portugal no final de 1935 e instala-se num hotel de Lisboa. Após alguns meses de estadia, abalado pelo que vê no Portugal do Estado Novo, pelos ecos que lhe chegam de uma Espanha à beira da guerra civil, e do resto do mundo, só falta mesmo a Ricardo Reis ir a correr à procura de uma célula clandestina do PCP para se inscrever no partido. Metamorfosear a personagem de talassa e reacionário dos quatro costados em progressista indignado, é forçar de mais a nota.

[Veja o “trailer” de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”:]

Reis passeia-se por uma Lisboa envolta num inverno frígido, chuvoso e deprimente e tem longas conversas com o fleumático fantasma de Fernando Pessoa (um Luís Lima Barreto parecidíssimo com Pessoa pouco antes de morrer, compare-se com as fotos existentes) sobre poesia, mulheres, a vida, a morte, este mundo e o outro. E é seguido por um agente da PIDE com hálito a cebola, seduz uma criada do hotel (Catarina Wallenstein) que tem um irmão metido na revolta dos marinheiros de 1936, berra contra os “ricos” e corteja uma jovem coimbrã (Victoria Guerra) com um braço paralisado e um pai enfaticamente fascista. Se o fantasma de Pessoa passa bem, já não há muita paciência para os fantasmas do antigamente segundo a preguiçosa vulgata antifascista. (E sim, o filme quer também que façamos o inevitável e simplório paralelo entre o mundo pré-II Guerra Mundial e a nossa agitada época).

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[Veja um vídeo sobre Ricardo Reis:]

Depois de Agustina (“A Corte do Norte”), Eça (“Os Maias”) e Fernão Mendes Pinto (“Peregrinação”), João Botelho prossegue aqui o seu programa de adaptações de obras sonantes da literatura portuguesa, procurando sempre evitar que os filmes se tornem demasiada e obviamente “literários” e o cinema se torne serviçal da palavra. Botelho rodou “O Ano de Ricardo Reis” num preto e branco muito contrastado e álgido (a lembrar “Tempos Difíceis”, outro filme seu), que lhe dá um pronunciado contorno fantasmagórico, mas seja por uma qualquer resistência oferecida pela escrita de Saramago, seja pela abundância de encontros palavrosos entre o heterónimo e o seu defunto criador, a que se juntam as previsíveis topadas de Reis com os estereótipos prontos-a-odiar do regime salazarista, a fita resulta átona, mortiça e soporífera.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” parece uma “ghost story” em que o terror é substituído por muita verbosidade e por uma “mensagem” ideológica a martelo, desajudada ainda pelo facto do brasileiro Chico Diaz, um ator mais do que respeitável, ter que procurar expressar-se com o sotaque de um português que viveu mais de 15 anos no Brasil, e por vezes não conseguirmos perceber o que ele está a dizer. É ainda tão curioso como pouco verosímil que este Ricardo Reis já idoso e sem atrativos de beleza ou físicos, seja um conquistador que percorre toda a escala social, da criada de hotel à jovem burguesa da província. Fernando Pessoa decerto que sentiria inveja do seu heterónimo.