Foi uma oportunidade única. Os advogados de Rui Pinto tinham à sua frente, sentado na cadeira das testemunhas, Amadeu Guerra que foi nem mais nem menos o antigo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e o único procurador (neste caso, já jubilado) arrolado como testemunha. Por isso, quiseram saber: afinal, se os documentos revelados no site do Football Leaks deram origem a investigações em Espanha, França ou na Bélgica, por que razão não aconteceu o mesmo cá? A resposta foi evasiva: “O Doutor tem a certeza que não aconteceu? Aconteceu e há processos. Na sequência de iniciativas de Autoridade Tributária (AT)”
Insatisfeito com a resposta, Francisco Teixeira da Mota, um dos advogados de Rui Pinto, voltou a insistir sobre se essas “iniciativas” da AT tinha tido origem no Football Leaks. “Já disse que não sei se a Autoridade Tributária se serviu dessa informação. Sei que há inquéritos“, respondeu Amadeu Guerra. O advogado lembrou até que as investigações em Espanha e na Bélgica chegam mesmo a referir o site criado por Rui Pinto. E cá?
Há vários processos investigados relativamente a clubes e jogadores. A origem não sei se é o Football Leaks“, disse apenas o procurador jubilado Amadeu Guerra.
Entre respostas que continuavam a deixar a dúvida sobre se os documentos do Football Leaks tinham ajudado a colocar pelo menos no “radar investigatório pessoas que à partida não eram suspeitas”, como preferiu descrever a juíza, o ex-diretor do DCIAP deixou uma garantia. A de que no tempo em que estava nesse cargo “nunca” foi considerada “informação obtida ilicitamente” para abrir investigações, como os documentos que estavam no Football Leaks.
Pelo menos no meu tempo, sempre direi, os aspetos que tem a ver com informação obtida ilicitamente, nunca considerámos o seu uso“, assegurou.
Francisco Teixeira da Mota quis também saber a razão pela qual foi criada uma equipa especial com três magistrados para investigações relacionadas com o futebol e, mesmo assim, houve “muitos casos de corrupção que não tiveram seguimento”. “Tem explicação para isto?”, perguntou o advogado. O antigo diretor do DCIAP assegurou que, no seu tempo, “os processos que havia para investigar eram investigados, dentro dos timings da PJ”. Mss admite: “Há inquéritos do meu tempo em que efetivamente queríamos que fossem investigados, mas a PJ não tinha meios”.
Como é benfiquista assumido, o procurador jubilado explicou que não queria saber o que estava nos processos e apenas pedia aos magistrados que investigassem “tudo” e “o mais rapidamente possível”.”Dizia: ‘Se precisarem de meios, peçam. Não quero saber o que está nos processos, sou conhecido como benfiquista e não me quero ver envolvido por essa questão’”, acrescentou.
No total, eram 53.749 emails que Amadeu Guerra tinha na sua caixa de email alegadamente acedida por Rui Pinto. “BES, Marquês…tinha lá tudo”, disse. Entre documentos relacionados com investigações, estavam também guias processuais, estudos, funcionamento e composição de várias entidades da PGR e ofícios pedidos pelo gabinete de cibercrime da PJ — documentos aleatórios e aparentemente sem qualquer influência em investigações.
Todos nós, relativamente a aspetos que têm a ver com atividade mais sensível, como estratégias de investigação, não trocávamos através de computador: conversávamos diretamente. Mas trocava emails sobre processos que estavam em segredo de justiça. Inicialmente era um pouco contra isso”, explicou a testemunha em tribunal.
Um dos documentos mostrados ao antigo diretor do DCIAP tinha até o número de telemóvel da Procuradora da República do julgamento do Football Leaks, Marta Viegas.
Está aqui o meu número de telemóvel se alguém precisar”, brincou a procuradora.
De acordo com a acusação, Rui Pinto terá acedido ao SIMP, o sistema informático do Ministério Público (MP), e ao email de Amadeu Guerra. Terá feito, no total, 307 acessos. No entanto, o facto de o número de telemóvel da magistrada se encontrar num dos documentos alegadamente roubados não deverá passar de uma coincidência já que, na altura dos acessos, ainda não se sabia quem era a Procuradora que iria representar o MP no julgamento. Até porque, nos documentos que estão a ser mostrados no julgamento estão contactos de outros magistrados, além desta Procuradora.
A sessão desta quarta-feira só começou às 14h00 porque a testemunha que estava prevista para a manhã, José Luís Cristóvão, informático da Procuradoria-Geral da República, está em isolamento profilático devido à Covid-19. Esta terça-feira, a sessão ficou marcada pelo depoimento desconcertante do antigo treinador do Sporting, Jorge Jesus: em tribunal, disse que não sabia que tinha um email do Sporting — que alegadamente Rui Pinto terá acedido — e que o Football Leaks “nunca” o preocupou. No final do depoimento, quis saber quem era Rui Pinto: “É aquele menino ali?”
“Nem sei por que é que estou aqui”. A passagem desconcertante de Jorge Jesus pelo Football Leaks
Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.
Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.
O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.