O ensaísta e antigo professor universitário Vítor Manuel de Aguiar e Silva, de 81 anos, é o mais recente vencedor do Prémio Camões. O anúncio foi feito esta terça-feira após deliberação do júri do prémio, que distingue anualmente uma personalidade pelo seu contributo de excelência no domínio da língua portuguesa.

Em comunicado enviado pelo ministério da Cultura, o júri do prémio, que neste ano de 2020 foi composto pelo escritor guineense Tony Tcheka e pelos professores universitários — de Portugal, Brasil e Moçambique — Clara Rowland, Carlos Mendes Sousa, António Cícero, António Hohlfeldt e Nataniel Ngomane, justifica a escolha com “a importância transversal” da “obra ensaística” de Vítor Aguiar e Silva.

Uma das suas obras ensaísticas mais importantes foi “Teoria da literatura” (1967), mas Vítor Manuel de Aguiar e Silva tem uma vasta bibliografia, tendo sido ainda autor de “Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa” (1971), “Crítica de Livros: teoria literária” (1977), “Camões: labirintos e fascínios” (1994), “Jorge de Sena e Camões: trinta anos de amor e melancolia” (2009) e “As humanidades, os estudos culturais, o ensino da literatura e a política da língua portuguesa” (2010), entre outros. Este ano, foi publicado um volume intitulado “Colheita de Inverno – Ensaios de teoria e crítica literárias”.

A atribuição do Prémio Camões a Vítor Aguiar e Silva reconhece a importância transversal da sua obra ensaística e o seu papel ativo relativamente às questões da política da língua portuguesa e ao cânone das literaturas de língua portuguesa“, refere o júri do prémio.

Diz ainda o júri que “no âmbito da teoria literária, a sua obra reconfigurou a fisionomia dos estudos literários em todos os países de língua portuguesa. Objeto de sucessivas reformulações, a [obra] ‘Teoria da Literatura’ constitui-se como exemplo emblemático de um pensamento sistematizador que continuamente se revisita. Releve-se igualmente o importante contributo dos seus estudos sobre Camões”.

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A ministra da Cultura, Graça Fonseca, quis por sua vez destacar as “qualidades intelectuais e académicas” de Vítor Aguiar e Silva e o “perfil humanista com que marcou gerações de alunos e leitores”.

Reagindo através de um vídeo, enviado ao Observador, a ministra acrescentou: “A sua obra revela apurado sentido crítico e um sempre renovado olhar de leitor. Parabéns, Vítor Aguiar e Silva, por este mais do que merecido Prémio Camões”.

“Comovido”, insiste: “O Acordo Ortográfico necessita urgentemente de uma reforma”

Em reação à distinção, Vítor Aguiar e Silva contou ao Observador que a ministra da Cultura telefonou-lhe ao final da tarde, por volta das 18h30, para lhe dar a notícia. “Estou tão comovido que mal consigo articular um pequeno depoimento. Comovido porque fiz parte do júri que atribuiu o primeiro Prémio Camões, ao Miguel Torga, e porque fiz parte do júri que no ano seguinte atribuiu o Prémio Camões a João Cabral de Melo Neto”.

Tenho uma ligação especial a este prémio. Depois, tem um significado simbólico sem igual no contexto da língua e da literatura portuguesa. Estou comovido por a minha obra ter sido distinguida”, referiu.

Vítor Aguiar e Silva considerou ainda “possível” que os seus estudos e ensaios sobre Luís Vaz de Camões tenham “contribuído” para que o júri do Prémio Camões “tenha tomado a decisão que tomou”. E lembrou: “Desde os anos 60 do século passado tenho consagrado grande parte do meu trabalho intelectual ao estudo de Camões e da poesia camoniana, sobretudo da poesia lírica — mas também a poesia épica”.

Além dos estudos sobre Camões, o vencedor do prémio referiu-se ainda aos seus estudos sobre Teoria da Literatura, nomeadamente à sua obra mais conceituada e lida, publicada em 1967: “A ‘Teoria da Literatura’, que escrevi, e que teve já não sei quantas edições e reedições, no Brasil é um livro que teve uma difusão muito grande, e em toda a América Latina, através da tradução espanhola. Tudo isto me comove porque estou no crepúsculo da vida“.

Diferentes edições da obra “Teoria da Literatura”, de Vítor Aguiar e Silva, em conjunto apresentado ‘online’ pela  Universidade de Coimbra

Já sobre se o júri ter enaltecido o “papel ativo” de Vítor Aguiar e Silva “relativamente às questões da política da língua portuguesa” estará de algum modo relacionado com o vencedor ter assinado a principal petição pedindo a abolição do Acordo Ortógrafico de 1990 — a chamada “Petição em Defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico” —, Vítor Aguiar e Silva referiu:

Penso que o chamado Acordo Ortográfico necessita urgentemente de uma reforma que contribua para que a língua portuguesa não apresente aquilo que considero soluções aberrativas na ortografia. E penso que o Brasil vai ser, já é, o grande domínio da língua portuguesa no século XXI e tudo quanto contribua para não cavar diferenças e oposições, será bem-vindo, sem que para isso a ortografia do espaço linguístico de Portugal sofra os tratos de polé que tem sofrido.”

O Acordo Ortográfico

Presidente da APE: “É uma figura maior da academia, do ensaísmo e da realidade literária”

Para José Manuel Mendes, Presidente da Associação Portuguesa de Escritores (APE), o prémio é “o reconhecimento antes de mais de uma obra ímpar no domínio da Teoria da Literatura e de tudo quanto produziu até ao presente, na esfera dos estudos camonianos”.

Trata-se de uma figura maior da academia, do ensaísmo e da realidade literária nas suas múltiplas dimensões”, vincou ainda o presidente da APE, em declarações à Rádio Observador.

A distinção de Vítor Aguiar e Silva com o Prémio Camões “sublinha um percurso que de há muito se achava consagrado entre especialistas e leitores”, referiu ainda José Manuel Mendes, notando também a existência de “livros absolutamente incontornáveis”, em alguns casos “arrebatadores”, nomeadamente “os que se situam na esfera dos estudos camonianos”.

São disso exemplo, para o presidente da APE, “A Lira Dourada e a Tuba Canora” (2008) e “o notabilíssimo ‘Colheita de Inverno”, publicado “há dois meses” e que “é uma obra que não deixa de surpreender pela sua atualidade, pela erudição, pelo conhecimento verdadeiramente raro do foro literário”.

Uma vida entre a universidade e os livros, entre Camões e a Teoria da Literatura

Nascido em Penalva do Castelo em 1939, tendo já comemorado este ano 81 anos, Vítor Aguiar e Silva obteve “todos os seus graus e títulos académicos” na Universidade de Coimbra — licenciou-se em Filologia Românica e doutorou-se depois em Literatura Portuguesa.

Depois de se formar continuou na Universidade de Coimbra, tendo sido professor catedrático da Faculdade de Letras desta universidade até 1989. No final dos anos 80, passou a professor catedrático do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, tendo dirigido o Centro de Estudos Humanísticos e a revista Diacrítica.

Vítor Aguiar e Silva foi ainda vice-reitor da Universidade do Minho entre 1990 e 2002, tendo passado em 2002 à situação de professor aposentado. Antes disso, foi também professor convidado em universidades internacionais.

O ensaista e antigo professor universitário dedicou boa parte da vida ao estudo, ensino e investigação da Teoria da Literatura e da Literatura Portuguesa do Maneirismo, do Barroco e do Modernismo. Como investigador, como aliás a posição oficial do júri o expressa, dedicou-se em especial aos estudos camonianos, como se atesta por obras ensaísticas já mencionadas como “Camões: labirintos e fascínios” e “Jorge de Sena e Camões: trinta anos de amor e melancolia”.

Vítor Aguiar e Silva já tinha sido distinguido com o Prémio Vergílio Ferreira (atribuído pela Universidade de Évora e entregue em 2002), com o Prémio Vida Literária (promovido pela Associação Portuguesa de Escritores e pela Caixa Geral de Depósitos e entregue em 2007) e em 2018 com o Prémio Vasco Graça Moura da Cidadania Cultural.

Prémio Vasco Graça Moura atribuído ao professor Vítor Aguiar e Silva

Sucessor de Chico Buarque, Manuel Alegre, Lobo Antunes ou Sophia

O novo vencedor do Prémio Camões, instituído no final dos anos 1980 pelos governos de Portugal e Brasil, sucede assim ao escritor, compositor e cantor brasileiro Chico Buarque, a quem tinha sido atribuído o galardão em 2019.

Foram anteriores vencedores o caboverdiano Germano Almeida (2018), o português Manuel Alegre (2017), o brasileiro Raduan Nassar (2016) a portuguesa Hélia Correia (2015).

Também escritores como Mia Couto (em 2013), Manuel António Pina (em 2011), João Ubaldo Ribeiro (2008), António Lobo Antunes (2017), Agustina Bessa-Luís (2004), Rubem Fonseca (2003), Maria Velho da Costa (2002), Eugénio de Andrade (2001) e Sophia de Mello Breyner (1999) foram distinguidos com o prémio, que teve como primeiro vencedor Miguel Torga (em 1989).