A direção do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) já respondeu às críticas que lhe foram feitas na quinta-feira de manhã pelo responsável de uma associação cultural excluída de um dos habituais concursos de financiamento ao cinema. O concurso “encontra-se em fase de audiência de interessados”, nos termos da lei, “para que todos os candidatos, caso assim o entendam, se possam pronunciar até ao dia 4 de dezembro”, transmitiu ao Observador o conselho diretivo do ICA.

As críticas surgiram numa carta aberta de Rui Pereira, da associação cultural Zero em Comportamento — ligada ao nascimento do festival IndieLisboa e hoje responsável por ciclos de cinema para o público infantojuvenil. Segundo Rui Pereira, o ICA teve dois pesos e duas medidas na edição de 2020 do concurso de Apoio Ad-Hoc (para iniciativas gerais de divulgação do cinema).

A Zero em Comportamento tinha pedido mais de 20 mil euros de financiamento para uma plataforma online de videoclube, mas viu a candidatura rejeitada na segunda chamada do concurso, que decorreu de 1 de junho a 2 de julho. “Projeto interessante, não se considerando no entanto prioritário face aos demais”, justificou o júri. Rui Pereira reclamou, mas não lhe deram razão.

Nos outros procedimentos concursais do ICA os jurados são externos, requisitados pela direção do instituto depois de ouvido um órgão consultivo, enquanto no Apoio Ad-Hoc apenas o conselho diretivo tem poder de decisão.

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Acontece que meses depois, na terceira chamada do mesmo concurso, organizado entre 4 de setembro e 13 de outubro e com resultados conhecidos no início desta semana, o ICA aprovou 10 mil euros para um projeto que Rui Pereira considera “basicamente o mesmo” da Zero em Comportamento: a exibição de filmes em streaming. Esse projeto pertencerá a Pedro Borges, proprietário da sala de cinema lisboeta Cinema Ideal e da distribuidora Midas Filmes. A lista de avaliação e classificação final só será conhecida depois de 4 de dezembro.

Há ainda outro facto contestado. De acordo com o queixoso, numa primeira chamada do concurso, de 18 de fevereiro a 19 de março, contou-se entre os vencedores uma proposta da Medeia Filmes que consistia em “disponibilizar online durante alguns dias” películas do catálogo da distribuidora Leopardo Filmes. “Toda esta situação é pouco clara e duvidosa”, alegou Rui Pereira, contactado pelo Observador depois de ter divulgado a carta aberta.

“A candidatura do Cinema Ideal é, na base, igual à nossa e foi apoiada, sabendo-se que Pedro Borges tem um histórico de saber fazer barulho mediático sempre que se considera prejudicado nos concursos do ICA. Por outro lado, o projeto da Medeia consistiu simplesmente em disponibilizar através do Vimeo, uma plataforma que já existe e que é gratuita, filmes do catálogo da Leopardo Filmes. Como concorrente, tenho acesso às decisões do júri, e sei que o orçamento que a Medeia apresentou a concurso incluía uma rubrica referente a direitos de exibição dos filmes. Se os filmes fazem parte do catálogo da Leopardo, então a exibidora Medeia vai pagar à Leopardo pela utilização desses direitos. É um conflito de interesses, porque ambas são empresas ligadas a Paulo Branco.”

Ao que regista o portal de atos societários do Ministério da Justiça, o produtor Paulo Branco cessou funções em 2014 como gerente da Leopardo Filmes e em 2018 como gerente da Medeia, sendo ambas as funções hoje asseguradas pela filha, Mariana Branco.

Uma questão de “prioridade”

O mesmo responsável disse que além de já ter escrito ao ICA a expor estas divergências vai também informar por carta a ministra da Cultura, Graça Fonseca, e o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média, Nuno Artur Silva. “Não se compreende como é que perante projetos praticamente iguais o ICA entende que uns são prioritários e os outros não são prioritários”, sublinhou Rui Pereira. “É um termo vazio e gostávamos de saber quais os critérios”.

Questionada sobre este aspeto, a direção do ICA remeteu para o artigo 7º do regulamento do concurso Ad-Hoc, onde se diz que são oito os critérios, podendo o júri decidir com base em apenas um deles. Dois desses critérios estão relacionados com a questão da “prioridade”. É dada “prioridade às iniciativas enquanto instrumentos de expressão da diversidade cultural” e “prioridade às iniciativas que assegurem diretamente, em colaboração ou através de outras entidades, a execução das políticas cinematográficas e audiovisuais”, lê-se.

Reconhecendo que a Zero em Comportamento tem recebido diversos apoios financeiros do ICA, Rui Pereira disse que as suas críticas não pretendem reverter as decisões tomadas ou levar à impugnação do concurso, “até porque do ponto de vista administrativo não houve nenhum procedimento incorreto”. “Parece-nos, sim, muito importante que a comunicação social e o grande público saibam o que se passa”.

Os concursos do ICA são alvo de frequentes polémicas, com muitos agentes do cinema a queixarem-se de falta de transparência nas decisões ou até mesmo da composição dos júris. Já este ano, antes da Zero em Comportamento, houve notícia de queixas do FICLO (Festival Internacional de Cinema e Literatura de Olhão), que em setembro considerou não ter havido respeito pelo “princípio da igualdade e proporcionalidade”, e da Midas Filmes, que em Agosto foi excluída de um concurso por alegado “delírio absoluto” de burocracia por parte do instituto tutelado pelo Ministério da Cultura.