O advogado João Silveira Botelho, administrador da Fundação Champalimaud, vai a julgamento por corrupção ativa, após ter sido acusado e pronunciado numa operação que investigou uma rede de favores e contrapartidas composta por diversos funcionários do Fisco. No recente despacho de pronúncia do Tribunal Central de Instrução Criminal, a que o Observador teve acesso, é possível ler que o arguido terá começado, a partir de 2005, a recorrer a Manuel Adolfo Gonçalves, funcionário das Finanças, para lhe tratar de assuntos fiscais. Em 2015 terá ido mais longe e solicitado que resolvesse um assunto da sua cunhada Teresa Palmeiro, identificada no processo como advogada e administradora no Hospital da Cruz Vermelha, em Benfica, sobre a qual não recaem suspeitas, nem foi pronunciada. Em troca terá oferecido convites ao funcionário para a cerimónia de entrega do prémio da Fundação Champalimaud. Os advogados de defesa entendem que estes convites não tem expressão pecuniária e que não há relação entre eles e os factos em causa.

Amigo de Marcelo Rebelo de Sousa e apontado por diversos órgãos de comunicação social como uma das pessoas que têm estado por trás da recolha de assinaturas para a recandidatura, Silveira Botelho foi no passado chefe de gabinete da antiga ministra da Saúde Leonor Beleza, com quem continua a trabalhar. Desde 2016 que é pública a proximidade entre Silveira Botelho e Marcelo. Na altura, o administrador da Fundação Champalimaud chegou a ser apontado nos jornais como uma hipótese para chefe da Casa Civil. Porém, em declarações ao Observador, o Presidente da República nega o envolvimento de Silveira Botelho, de quem assume ser amigo, nesta recandidatura: “Decidi não fazer nenhuma estrutura de campanha.” Quanto às notícias que foram sendo publicadas a dar conta do contrário, afirma que não passaram de “palpites”.

Segundo o processo 1130/14.7 TDLSB, o Ministério Público acredita ter desmantelado uma rede de funcionários da Autoridade Tributária (AT) colocados em várias áreas dos serviços e departamentos de finanças disponíveis para, a troco de dinheiro, bens patrimoniais ou não patrimoniais, “como ficarem com um favor para troca”, porem em marcha procedimentos que beneficiassem contribuintes com problemas com a administração fiscal. A rede, de que faria parte Manuel Adolfo Gonçalves, era contactada, por norma, por técnicos oficiais de contas, advogados, empresários e prestadores de serviços. Entre os principais serviços ilegais solicitados estariam a obtenção de informação fiscal, bancária ou patrimonial de terceiros, eliminação de dívidas, consultoria e aconselhamento fiscal, e cessações de atividades em sede de IVA e IRC.

No total, a 27 de novembro deste ano foram pronunciados — ou seja, foi decidido que seguirão para julgamento — 44 arguidos. Mais de uma dezena destes são funcionários tributários. A acusação havia sido conhecida em 2017.

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A conversa sobre o reembolso “entre aspas”

Um dos vários alegados esquemas enunciados é o de Teresa Palmeiro. Enquanto advogada teria de ter entregue a declaração periódica de IVA até ao dia 15 do 2.º mês seguinte ao primeiro trimestre do ano de 2013, ou seja, até 15 de maio de 2013. Como não o fez, a 13 de agosto de 2013 o Fisco procedeu à liquidação oficiosa daquele imposto, “no valor de 8.059,20 euros”. Como o pagamento voluntário não foi feito até 19 de janeiro do ano seguinte, acabou por ser extraída uma certidão de dívida que serviu de base à instauração do processo de execução fiscal, refere a acusação, adiantando que menos de um mês depois foi entregue pela advogada uma declaração de substituição “fora do prazo e sem valores”, tendo mais tarde solicitado a anulação da dívida.

Por se  tratar de uma liquidação oficiosa, e dados os prazos decorrentes desta, defende a investigação, o valor havia-se tornado definitivo, pelo que o requerimento “foi indeferido” e “foram concretizadas penhoras de vencimento e de imóveis”.

É na sequência disso que João Silveira Botelho se envolve no caso, segundo a tese do Ministério Público, cujos indícios o juiz Carlos Alexandre considera agora serem suficientes para avançar para julgamento. Mas há mais elementos envolvidos e que fariam a ponte entre João Silveira Botelho e o funcionário das Finanças: António Castelhanito, ex-funcionário da AT, aposentado desde 2001, e que à data exercia a titulo privado uma atividade de prestação de serviços tributários ao administrador da Fundação Champalimaud e à sua cunhada; e Francisco Saldanha, funcionário de Silveira Botelho.

No dia 6 de abril de 2015, Silveira Botelho falou com o técnico de Administração Tributária, através do telefone de Francisco Saldanha, para saber qual o ponto de situação da penhora à casa da cunhada.

Depois de um primeiro cumprimento, João Botelho pergunta ao interlocutor como estava a “história da praça”. Perante a incompreensão de Manuel Adolfo Gonçalves, o administrador da Champalimaud concretiza: quer saber como está a história da cunhada. O funcionário responde-lhe que a situação está a ser tratada, acrescentando que “aquilo” não vai “à praça” e que Teresa Palmeiro em principio irá pagar o valor em dívida. É dito de seguida a João Botelho que tudo está a ser feito pelos meios legais. O objetivo, porém, diz o funcionário do Fisco, é, “entre aspas” ver “se pega” e solicitar o reembolso do valor pago.

Como o sistema informático terá sido driblado pelos arguidos

A 13 de agosto de 2015, Teresa Palmeiro pagou, assim, 9.174,73 euros em dívida (com juros e custas), tendo no dia 28 do mesmo mês sido feita a anulação da certidão de dívida no valor de 8.059,20 euros, por motivo de declaração fiscal de substituição. Ou seja, ‘pegou’ e, segundo o Ministério Público, o esquema foi feito de forma a driblar o sistema informático.

Para o Tribunal Central, Manuel Adolfo Gonçalves fez este aconselhamento ciente de que o processamento da anulação da dívida e subsequente devolução da importância paga a mais era feito automaticamente. Ou seja, sabia que, por limitações do sistema informático, o mesmo aceitaria a declaração de substituição como tendo sido feita dentro do prazo, refere no despacho de pronúncia. É ainda afirmado que o reembolso a Teresa Palmeiro decorreu de um ato ilegal que prejudicou os interesses da Fazenda Nacional.

Para o Ministério Público, entendimento validado pelo juiz de instrução, o arguido João Silveira Botelho tinha noção de que a postura assumida por Manuel Adolfo Gonçalves, ao tentar resolver a situação da cunhada, violava os especiais deveres funcionais a que o mesmo estava obrigado.

Mais: para a acusação são “elucidativas” outras conversas mantidas entre Adolfo Gonçalves (acusado por corrupção passiva) e os arguidos Castelhanita (acusado por corrupção passiva) e Saldanha: os quatro tiveram assim uma atuação contrária à lei, considerando o juiz de instrução haver factos indiciários “suficientes e bastantes” para o caso avançar para julgamento.

O que sustentam as defesas e os “sistemas de contactos”

As defesas, por seu lado, sustentam, entre outros pontos, que há uma inexpressividade patrimonial, dado que o convite para uma cerimónia da Fundação não tem expressão pecuniária e que não há relação entre a extinção do processo de execução e os convites.

No caso da defesa de João Silveira Botelho, a cargo dos advogados Rui Patrício e Tiago Geraldo, foi referido nas alegações finais, cujo resumo fizeram chegar ao Observador: “A acusação basta-se a si mesma na sua intrínseca e inultrapassável insuficiência indiciária, factual e juridicamente. Essa insuficiência demonstra-se em três pontos, tantos quantos aqueles que a acusação teria de indiciar, pois a acusação a) não indicia contrapartida, e muito menos ilícita; b) não indicia vantagem; c) e não indicia dolo corruptivo”.

Foi ainda afirmado que, “além do mais que acima expôs, demonstra cristalinamente a falta de dolo na conversa telefónica gravada nos autos entre Manuel Adolfo Gonçalves e o arguido João Silveira Botelho, em que aquele se limitou a informar que, nos termos legais (cf. auto de transcrição de comunicação de 06.04.2015, a fls. 141- 143 do Apenso “J”), para extinguir o processo de execução, Teresa Palmeiro teria de ser paga a dívida exequenda”.

A terminar, os advogados sustentam que o convite para a entrega do prémio da Fundação Champalimaud foi uma cortesia e resultado de uma relação pessoal: “É manifesto que não se verificam, a vários níveis, elementos típicos objetivos e subjetivos que integram o crime de corrupção activa”.

Contactado esta quarta-feira pelo Observador, através da assessoria de imprensa da Fundação Champalimaud, João Silveira Botelho fez saber que não pretendia prestar declarações, encaminhando para o advogado Rui Patrício qualquer esclarecimento. O advogado, por seu turno, referiu que “a defesa acha a acusação totalmente infundada e está convicta de que isso será demonstrado em julgamento, bastando para isso que os factos e as provas sejam devidamente analisados”. Quanto às notícias sobre uma alegada intervenção na recolha de assinaturas do Presidente da República, Rui Patrício esclarece: “Essa matéria não vou comentar, porque extravasa a minha função enquanto advogado”.

Para o Tribunal Central de Instrução Criminal, contudo, o facto de o valor material não assumir relevância maior, não significa muito, tal como já havia defendido a acusação. Refere que a Fundação Champalimaud é uma instituição “extremamente reputada e de enorme relevância na sociedade portuguesa”, e que os convites para participar em “qualquer cerimónia por esta organizada” ainda que não tenham expressão económica, dão  “reputação social”. O despacho de pronúncia sublinha ainda que Manuel Adolfo não tinha acesso direto a João Botelho — contactariam apenas através de Saldanha — e que, por isso, dificilmente seriam dados tais convites se em causa não estivesse uma alegada compensação.

“São os apelidados ‘sistemas de contactos’”, sublinha o juiz Carlos Alexandre.

O que o Ministério Público revelou em 2017

Em abril de 2017, o Ministério Público fez uma nota da acusação sem referir o nome dos arguidos envolvidos no alegado esquema. “O MP requereu o julgamento, em tribunal coletivo, de quarenta e cinco arguidos, treze dos quais funcionários da AT (dois deles reformados), uma pessoa coletiva, TOC’s, contabilistas, advogados, vários gestores de empresas e empresários, entre outros, pela prática dos crimes de corrupção passiva e ativa, falsidade informática, acesso ilegítimo, abuso de poder, tráfico de influência, fraude fiscal qualificada, falsas declarações e detenção de arma proibida”.

Segundo a acusação, que agora foi ‘validada’ em fase de instrução, “está indiciado que, no período compreendido entre o segundo semestre de 2011 e 17.04.2016, os arguidos funcionários da AT, a troco de dinheiro e de bens patrimoniais e não patrimoniais, praticarem atos que beneficiaram particulares junto da administração fiscal”.

Segundo concluiu a investigação, “os funcionários da AT acederam a dados pessoais de contribuintes contidos em sistema informático de uso exclusivo da AT e cobertos por segredos, violando as responsabilidades e deveres funcionais a que se encontravam vinculados pelo exercício de funções públicas, sempre visando obter para si e para terceiros benefício económico indevido à custa da defraudação da Fazenda Nacional”.

Os arguidos ficaram sujeitos às medidas de coação de termo de identidade e residência, proibição de contactos e obrigação de permanência na habitação com sistema de vigilância eletrónica (esta última relativamente a um dos arguidos), tendo agora em fase de pronuncia se mantido o Termo de Identidade e Residência.

“O MP requereu a aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função aos arguidos funcionários da AT e que fossem declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens auferidas pelos mesmos pela prática dos crimes imputados. O MP deduziu ainda Pedido de Indemnização Civil em representação do Estado Português (Ministério das Finanças) no valor de 57.465€ (cinquenta e sete mil e quatrocentos e sessenta e cinco euros)”, referia na altura a nota da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.