Viarco: “Fazer um lápis é como fazer uma sanduíche”

Entrar na fábrica da Viarco, em São João da Madeira, é como entrar numa escola primária do século passado: escadas em madeira, paredes brancas com marcas de grafite, cheiro a cola e lápis e um corrupio de gente vestida com a mesma bata.

Quem nos recebe é José Vieira, bisneto de Manoel Vieira Araújo, fundador da marca que já conta com 112 anos de história. José chegou à Viarco aos 20 anos, hoje tem 45 e conhece todos os cantos da casa. Formado em marketing, começou por representar a mãe nas assembleias gerais e atualmente está ao leme do negócio de família com a mulher. Tornar a fábrica património de interesse municipal e apostar cada vez mais no turismo industrial são dois grandes objetivos para garantir a sua continuidade. A Viarco é, desde 2011, uma das 15 empresas que integram o circuito industrial do município, onde o calçado e a chapelaria são reis. Recebe 10 mil visitas por ano e para a conhecer é obrigatório vestir uma bata branca e uma proteção para os pés. “A grafite suja muito”, explica José.

© Luís Ferraz

Os cartazes publicitários com o icónico lápis número 2 chamam a atenção na entrada. Dizem Portugália e não é uma referência à famosa cadeia de restaurantes, mas sim o antigo nome da marca. “O fabrico do lápis nasceu em 1907 em Vila do Conde, mas só em 1931 é que o meu bisavô, um industrial da chapelaria de São João da Madeira, quis dispersar a sua atividade e adquiriu a Portugália, registando-a cinco anos mais tarde como Viarco, nome onde utilizou as iniciais de Vieira Araújo & Companhia Lda.”, conta o atual administrador. Em 1941, a fábrica foi transferida para São João da Madeira, onde permanece até hoje. Aqui a tecnologia não evoluiu, as máquinas são antigas e o processo de produção é o mesmo desde os anos 50, sem que isso seja um problema. “Quando tudo falha, elas funcionam. São ferramentas únicas.”

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Na Viarco os trabalhos dividem-se em três secções e tudo começa na sala da mina com uma mistura de grafite, água e argila, para os lápis de desenho, ou caulino, pigmento, tylose e água, para os lápis de cor. Estes componentes são envolvidos num moinho cerâmico durante quatro horas e o resultado passa depois por um rolo compressor. Através de uma máquina de prensa, o cartucho de cinco quilos transforma-se em pequenos fios de mina que, depois de cortados à medida de cada lápis, são secos e cozidos num forno a mais de mil graus.

© Luís Ferraz

É na sala de arredondamento, no piso superior, que o lápis ganha a sua forma como o conhecemos, seja ele redondo, quadrado ou hexagonal. Há caixotes com placas de madeira com diferentes tamanhos e larguras: “90% é cedro dos Estados Unidos, o restante é pinho europeu”. As placas são introduzidas numa máquina de corte onde são abertas ranhuras, colocada cola branca e uma mina, sendo depois tapadas com uma placa exatamente igual. “Fazer um lápis é como fazer uma sanduíche”, diz José. As tábuas ficam empilhadas numa prensa a repousar durante 24 horas para depois serem cortadas e afiadas consoante o tipo de lápis que se pretende. É hora dos acabamentos e o material sobe num elevador especial para o terceiro piso. Nesta sala o cheiro a tinta é intenso e há seis máquinas ligeiras onde os lápis são pintados seis vezes e secam até chegarem ao fim do tapete. “Este, por exemplo, é um pantone que desenvolvemos para um cliente.” Sim, dentro de portas são criadas cores exclusivas e até se fazem modelos para daltónicos.

© Luís Ferraz

Depois do banho de cor, os lápis são impressos, seja em baixo relevo, através de um papel térmico, ou em serigrafia. Seguem-se personalizações como borrachas ou ímanes incorporados e é nesta fase que encontramos Marina Pinto, que aos 24 anos é das contratações mais recentes. Na Viarco há 30 trabalhadores e um lápis pode demorar uma a duas semanas a estar concluído. “As pessoas não fazem ideia do trabalho que dá fazer uma coisa tão simples e tão barata”, diz José. Entre 2009 e 2011, altura da crise, a Viarco esteve em risco de fechar e foi obrigada a reinventar-se, com um novo foco no segmento da arte e do design que tem resultado em produtos originais, como a aguarela de grafite ou a secretária de desenho Risko, que recebeu uma menção honrosa nos German Design Awards deste ano. “O problema do lápis é durar demasiado tempo e a nossa missão é mostrar que uma coisa que custa 50 cêntimos dá para um mundo de possibilidades.”

Depois de embalados, os lápis estão prontos a seguir viagem para os quatro cantos do mundo. “Estes vão para o Hotel Ritz, em Lisboa, estes para o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque e estes para o Qatar.” Atualmente, a marca exporta cerca de 50% da sua produção para países como EUA, Austrália, Coreia do Sul, Dinamarca, França ou Espanha e este ano teve a primeira encomenda para a China.

© Luís Ferraz

No último piso da fábrica, no final da visita, fica a loja onde se podem levar para casa todos os modelos da marca. Ao lado dos famosos lápis tabuada estão os aromatizados e até os Dummy. “Estes foram pensados para aquelas pessoas que passam pela nossa secretária e nos roubam o lápis”, conclui José. A partida? Não têm mina e por isso não escrevem.

Há visitas guiadas todos os dias da semana: segunda das 14h às 17h, terça a quinta das 9h às 12h30 e das 14h às 18h, sexta das 9h às 12h30. É necessário marcar com antecedência: 256 200 204. Preço: 3,50€ (grupos com mais de 15 pessoas) a 5€ (grupos de 5 a 9 pessoas).

Paupério: um sortido de memórias, bolachas e biscoitos

Na Paupério ainda impera o método artesanal, as receitas mantêm-se há 145 anos e são confecionadas por 30 trabalhadores, maioritariamente mulheres. Por dia a marca produz uma tonelada de biscoitos e bolachas, de 40 variedades possíveis. Mas nem sempre foi assim.

No início, os dois fundadores, António de Sousa Paupério e Joaquim Carlos Figueira, começaram por fazer pão e dedicar-se à moagem e à comercialização de cereais em Valongo. Nessa altura (1874), a cidade fornecia cereais para o Porto e tinha uma forte tradição na panificação, onde a regueifa era a estrela da região. “70% das famílias tinham um padeiro e o ofício chegava mesmo ao ponto de em todas as casas existir um forno nas traseiras”, conta Hélio Pacheco, administrador da Paupério há dez anos e casado com Ana Sousa, sexta geração à frente da marca. Neste panorama, Paupério e Figueira foram visionários e perceberam que as bolachas e os biscoitos podiam fazer a diferença no mercado. “A palavra biscoito vem de cozer duas vezes e naquela altura eram as pessoas abastadas que consumiam este produto.”

© Luís Ferraz

Mais de um século depois, os biscoitos são cozidos num senhor forno de 18 metros e a marca centenária organiza visitas à fábrica guiadas por uma engenheira alimentar. Nas instalações cheira a bolo acabado de fazer e tudo começa no armazém, onde está a matéria prima nacional – a única exceção é a margarina vegetal que vem da vizinha Galiza. Lá dentro saltam à vista os sacos de papel com farinha de trigo, milho e aveia, balanças, espátulas, tabuleiros de inox e máquinas antigas, algumas com 70 anos de vida. Atualmente a Paupério fabrica três tipos de bolachas: as duras, onde a percentagem de manteiga é inferior a 10% e cuja massa é estendida como um lençol para depois ser cortada; as amanteigadas, que contêm muita margarina vegetal e por isso são mais moldáveis; e as líquidas, que levam ovos e requerem um saco de pasteleiro para lhes dar forma. Seja qual for a variedade, tudo começa com o processo de pesagem dos ingredientes. Em masseiras com capacidade para 150 quilos bate-se a farinha, o fermento, a margarina, o açúcar, o sal ou o soro de leite durante 45 minutos até ficar tudo envolvido e homogéneo.

A massa é então cortada em pedaços e colocada numa máquina para ser estendida e esticada até ficar com a espessura ideal, como se fosse um tapete. Graças a rolos de moldes diferentes, é então cortada ou prensada — as bordas que sobram regressam ao início, para serem reaproveitadas — e colocada, já em forma de bolachas ou biscoitos, em tabuleiros que vão ao forno durante cerca de seis minutos.

© Luís Ferraz

Para algumas variedades, o passeio não termina aqui. As bolachas húngaras, por exemplo, são depois cobertas por uma cascata de chocolate fundido, passam por um soprado, que retira o excesso de chocolate, e entram numa câmara frigorífica para solidificarem. Os modelos partidos ou com defeito são vendidos em sortidos num saco transparente. “Aqui não há desperdício”, garante Hélio Pacheco. Uma hora é o necessário para fazer uma bolacha e a viagem só termina na sala de embalamento, onde o rádio está normalmente ligado e as prateleiras estão recheadas de embalagens de papel alusivas a cidades como Lisboa e Porto, e das famosas latas com desenhos coloridos da década de 50. “São desenhos que estão no nosso arquivo, assim como livros de receitas, notas de encomendas ou cartas de clientes satisfeitos.”

A visita só termina na loja onde o portfólio da marca convive com licores, vinhos e brinquedos de madeira. Nas estantes reinam ainda a marmelada e as compotas, também confecionadas na casa, e a tosta rainha – uma tosta doce feita a pedido da rainha D. Amélia numa visita ao Porto em 1996.

© Luís Ferraz

Com visitas a funcionar há três anos, em 2020 a fábrica irá integrar um núcleo museológico, onde as máquinas industriais serão as protagonistas. Próximos projetos com assinatura Paupério incluem ainda bolachas a imitar selos de correio com edifícios portugueses, e até um ovo surpresa com uma bolacha amanteigada lá dentro.

As visitas guiadas por uma engenheira alimentar acontecem nas primeiras quintas-feiras do mês, às 10h. Nos restantes dias há visitas entre as 9h30 e as 12h30, as 14h30 e as 16h30. A marcação é feita online: pauperio.pt/pagina/visitas/. Preço: 2€ (valor dedutível em compras iguais ou superiores a 10€ na loja da fábrica). 

Burel Factory: da fábrica aos hotéis, a lã como fio condutor

O desenho de uma ovelha estilizada dá as boas-vindas a quem chega è fábrica e acaba por simbolizar também o próprio percurso da Burel. É moderno e ao mesmo tempo remete para a tradição antiga da lã, dois mundos que convivem em tudo o que faz a marca desde que pegou no tecido dos pastores da Serra da Estrela e lhe deu uma nova vida.

É por aí, aliás, que se iniciam as visitas guiadas à fábrica, em Manteigas. Numa sala com amostras, retalhos e aquilo que parecem flocos de lã, Cláudia Massano começa por explicar a história da Burel Factory e leva-nos a 1500 metros de altitude.

© Jorge Vieira

Foi na montanha que Isabel Costa e João Tomás descobriram as ruínas de um sanatório do século XIX que resolveram recuperar e transformar num hotel de charme, as Casas das Penhas Douradas. O alojamento abriu em 2007, numa altura em que tinham falido várias empresas de lanifícios e Manteigas estava a atravessar uma crise de desemprego. Com a ideia de aproveitar os saberes locais, Isabel – nessa altura à frente da área comercial da Sonae – interessou-se pelo burel e começou a desenvolver novas cores, a abrir-se a designers e a tentar dar alguma tridimensionalidade ao tecido num pequeno atelier alojado na fábrica Lanifícios Império. A ideia inicial era fazer a decoração do hotel, mas as almofadas, tapetes e fundos de cama foram tão bem recebidos que os teares continuaram a trabalhar e em 2009 a Burel abriu uma loja no Chiado. Era “um  buraquinho” na Rua Nova do Almada mas foi o suficiente para chamar a atenção de uns arquitetos que quiseram revestir a sede da Microsoft em Lisboa. Foi a primeira grande obra da marca – seguiram-se muitas outras nos últimos anos, OLX, Uber, Google, Nokia, Deloitte, EDP –, mas em 2011 a Lanifícios Império faliu e a marca ficou sem sede e sem o seu fornecedor de tecidos.

© Jorge Vieira

O edifício onde funciona agora a Burel Factory e onde a guia conta toda esta história foi ocupado nessa altura. “Comprámos o recheio da Império – máquinas, padrões, armários – e mudámo-nos para as instalações de uma outra fábrica que também tinha declarado insolvência, a Sotave, e que chegou a empregar 800 pessoas.” Dos 20 mil metros quadrados, a Burel ficou com três mil para desenvolver as suas coleções. É aí que, oito horas por dia, os teares não param, num compasso barulhento que obrigada vários dos trabalhadores a usarem proteções para os ouvidos e que permite chegar ao tecido, original do século xi e feito a partir da lã das ovelhas bordadeiras da Serra da Estrela.

A lã chega à fábrica já lavada, pronta a ser cardada num enorme open space com vigas de madeira no teto por onde se distribui a maquinaria. Do recheio da Lanifícios Império vieram algumas relíquias do século xix, incluindo a máquina de cardação, onde a lã é penteada três vezes, “até fazer um manto”. “A meio da terceira carda corta-se para fazer a mecha”, explica a guia. Parece um novelo pronto a usar, mas na verdade desfaz-se se a puxarmos, porque ainda é preciso transformar a mecha em fio, numa máquina de fiação dos anos 30 que ocuparia boa parte do tabuleiro da ponte Vasco da Gama, de tão comprida.

“Depois de os fios estarem prontos, vamos urdi-los para o tear”, continua Cláudia. Feita numa espécie de cilindro, a urdissagem é a teia onde 1600 a 2000 fios, dispostos em faixas na vertical, vão ser atravessados horizontalmente pela trama – aquilo que define o padrão. Na Burel, esses teares são como a própria equipa: uns mais velhos do que outros. “Temos equipamento moderno mas continuamos a usar este tear dos anos 40 porque é o que faz a ourela mais perfeita”, explica a guia enquanto mostra as laterais daquilo que será uma manta. Nesses teares, a lançadeira que leva o fio de um lado para o outro ainda é de madeira, e é António Diogo que manuseia aquilo que faz lembrar um paintball supersónico. Começou na Império com 11 anos, tem 60 e é o mais velho numa equipa de 35 pessoas que se foi abrindo a aprendizes.

© Jorge Ferreira

Chamar tecido ao que sai do tear é um erro, e essa é uma das lições que se tira das visitas, iniciadas assim que a Burel se mudou para esta fábrica, em nome da abertura à comunidade e não só. O termo correto é xerga, uma primeira versão do tecido que depois de ir ao controlo de qualidade ainda será lavada, tingida ou amaciada, “dependendo da peça”. No caso do burel, a xerga é batida e fervida, e é isso que lhe confere as propriedades procuradas durante séculos pelos pastores e hoje em dia por designers e arquitetos: “O tecido encolhe cerca de 40% e cria resistência à água e ao fogo, porque não há oxigénio entre as fibras”, explica Cláudia Massano. “Para além de impermeável é muito quente e tem propriedades de isolamento acústico elevadas.”

Numa segunda zona da fábrica, dedicada à confeção, há rolos de tecido já preparado ao longo de prateleiras a perder de vista. Muitos são transformados ali, outros vendidos a terceiros, num catálogo que atraiu as atenções de marcas portuguesas como a Carapau e a La Paz e que inclui 52 cores. Numa mesa estão almofadas em forma de raposa, noutra camisas de tipo pescador ou o início de um tapete de dois metros que irá para o novo hotel da marca, a Casa de São Lourenço. Os pontos 3D aplicados no tapete são apresentados com um exclusivo da marca e usados sobretudo em decoração e malas. O ponto Favo é bordado à mão, no Primavera dezenas de flores são também aplicadas manualmente.

© Jorge Ferreira

Há uma sala só para as Mantecas, a marca de mantas e cachecóis 100% lã que foi batizada com o nome original da vila de Manteigas. Algumas estão ainda por cortar, em enormes rolos, outras já preparadas a sair e com a indicação do seu destino: loja online, Dinamarca, Austrália. Nos últimos anos a marca tem apostado na internacionalização e é presença assídua em feiras como a London Textile Fair, a Maison et Objet e a Première Vision Paris.

Com a duração de 45 minutos, a visita termina com uma pequena exposição dos designers que têm vindo a trabalhar com a marca, de Sara Lamúrias, responsável pela mochila-capuz, a Tiago Silva, que fez o banco ovelha da coleção de criança. À saída, na antiga casa do guarda, é possível comprar vários dos produtos Burel, hoje em dia um grupo que inclui não só a marca mas também quatro lojas e dois hotéis. Para além da Casa das Penhas Douradas, onde tudo começou, lá no alto está também agora a Casa de São Lourenço, que abriu em outubro do ano passado no lugar da antiga pousada. Ao todo são 21 quartos, com direito a piscina interior aquecida. Mais uma vez, tradição e contemporaneidade encontram-se, numa decoração que junta mobiliário restaurado da pintora Maria Keil, a decoradora original da pousada nos anos 40, peças de design contemporâneo de marcas como a Vicara, a Util e a Branca Lisboa, e ainda, como não podia deixar de ser, burel em revestimentos de parede, telas, pufes, bancos, cabeceiras de cama e até numa instalação de milhares de estrelas, penduradas no teto do restaurante com vista panorâmica para o vale glaciar do Zêzere.

Há visitas guiadas de segunda à sábado, às 11h, de entrada livre e sem necessidade de marcação prévia. Fora desse horário custam 5€ por pessoa. As noites na Casa de São Lourenço começam nos 130€ (quarto duplo com pequeno-almoço e lanche).

Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle nº 4 (junho de 2019)