Foi com ritmo que, ao início da tarde, a Procuradora da República Marta Viegas começou a inquirição à inspetora da Polícia Judiciária (PJ) Aida Freitas. Tudo fazia crer que as suas declarações não seriam muito diferentes das do inspetor Hugo Freitas, ouvido horas antes. Os dois tinham sido os únicos inspetores a estar presentes, secretamente, no encontro numa estação de serviço na A5 entre os representantes da Doyen e Aníbal Pinto, então advogado de Rui Pinto e, à partida, as versões de um e outro seriam semelhantes. O encontro, supostamente marcado para negociar quantos milhões estaria a Doyen a pagar em troca da não divulgação de documentos sobre a empresa que o alegado hacker teria em sua posse, viria a ser uma das provas mais importantes e mais sólidas para acusar Aníbal Pinto e Rui Pinto do crime de tentativa de extorsão. Pelo menos, até esta terça-feira.
O ritmo da Procuradora Marta Viegas rapidamente abrandou quando percebeu que parte daquilo que inspetora ia dizendo era bem diferente do que o seu colega Hugo Freitas acabara de dizer. Porém, o silêncio de estupefação durou poucos segundos. Quando Aida Freitas admitiu que não ouviu “nada” do que aconteceu no encontro e que assinou o relatório elaborado sobre ele sem o ler e ainda confessou que se o tivesse feito “na altura, não tinha assinado”, o coletivo de juízes não conseguiu esconder a indignação — especialmente porque a inspetora lhes parecia contar aquilo com demasiada “ligeireza”.
Não ouvi nada do que eles falaram [no encontro]. Assinei o RDE (Relato de Diligência Externa), mas eu não li o que assinei. Tenho que ser muito honesta, muito sincera. Não estava a distância suficiente [para ouvir]”, confessou.
Visivelmente chocados, os juízes subiram o tom de voz para tentar perceber se a inspetora percebia a “gravidade disto” e se tinha noção que eles próprios fazem “julgamentos com base em prova da PJ, fazendo fé que aquilo que escrevem corresponde à verdade”. “Já que o diretor da Polícia Judiciária vem cá, será uma coisa à qual lhe chamaremos a atenção“, rematou a juíza-adjunta Ana Paula Conceição, referindo-se a Luís Neves, arrolado como testemunha pela defesa de Rui Pinto.
As declarações de Aida Freitas, naquela que é a 31.ª sessão do julgamento do Football Leaks, levaram a Procuradora da República a requerer que seja investigada por suspeitas de crime de falsidade de documento e falsas declarações. Depois de ter criticado a atuação da inspetora, o tribunal acabou por decidir extrair uma certidão para que possa ser aberto um processo isolado. É a segunda vez, ao longo do julgamento que põe Rui Pinto e Aníbal Pinto no banco dos réus, que é extraída uma certidão para investigar eventuais práticas criminosas por parte da PJ. Já na sessão de 10 de dezembro, o tribunal tinha decidido extrair uma certidão para investigar a alegada colaboração do inspetor-chefe da PJ Rogério Bravo com a Doyen. Estas supostas ligações já tinham sido investigadas anteriormente, mas o processo foi arquivado.
Relatório do encontro terá sido elaborado por inspetor que não esteve lá. “Isto é mais grave ainda”, diz juíza
Ao longo do depoimento, Aida Freitas explicou ainda que tem ideia de que foi o inspetor José Amador que redigiu o RDE. O problema é que este inspetor não estava no interior do estabelecimento onde ocorreu o encontro — estava no exterior, num local onde, não seria possível ouvir o que lá era dito.
Isto é mais grave ainda. Foi elaborado por pessoa que não esteve no encontro. Percebe a gravidade disto?”, questionou a presidente do coletivo, a juíza Margarida Alves, já exaltada e elevando o tom de voz.
A inspetora admitiu mesmo que assinar documentos sem os ler é habitual: “Muitos de nós assinamos coisas sem ler”. “Está a dizer-me que isto não foi um caso isolado? Está a falar com uma ligeireza que me está a fazer confusão. Até admitia que viesse denunciar uma irregularidade, mas sabe que costuma fazer isso. Se está na Unidade de Combate à Corrupção, melhor devia ler“, afirmou a juiza-adjunta.
Em reação a estas críticas, a inspetora voltou a reafirmar, não deixando margem para dúvidas: “Muitas vezes assinamos peças sem ler”. Questionada pela defesa de Rui Pinto, acrescentou que o que estava escrito no RDE “não é que não fosse verdade”. “Eu é que não ouvi. Assinei erradamente sem ler. Trabalhamos no voto da confiança: o meu colega é um excelente profissional, a PJ está muito bem conceituada”, afirmou, acabando depois por abandonar a sala, já não ouvindo a parte em que o tribunal extraiu certidão para que sejam investigadas suspeitas de crime de falsidade de documento e falsas declarações.
Inspetores em contradição: um diz que tinham ordem para deter advogado de Rui Pinto, outro diz que não
A primeira contradição surgiu logo assim que a inspetora Aida Freitas começou a falar sobre o encontro de 21 de outubro de 2015. De manhã, o inspetor Hugo Monteiro tinha dito que o objetivo de vigiar o encontro “não era a conversa”, mas sim “garantir a segurança do espaço” e das pessoas, incluindo empregados, e estar atento a “qualquer movimentação”. E que ambos tinham ordem superior para deter Aníbal Pinto, em dois cenários: se ele entregasse algum disco rígido ou objeto semelhante ou se o inspetor-chefe responsável pela operação desse ordem para avançar — nenhum se verificou.
O inspetor-chefe Rogério Bravo solicitou a minha presença na estação de serviço onde poderia acontecer uma detenção em flagrante delito“, explicou o inspetor.
Só que, de tarde, a inspetora Aida Freitas assegurou que o objetivo não era deter ninguém, mas sim “assistir a um encontro entre determinadas pessoas” e “ouvir a conversa” — que, como disse, não conseguiu ouvir porque estava longe. Segundo o inspetor Hugo Monteiro, nem ele nem a inspetora Aida Freitas tinham sido contextualizados sobre que encontro era aquele: “No briefing que houve na bomba de gasolina, foi-nos indicado à distância quem seria Pedro Henriques e Nélio Lucas. As outras pessoas que estariam para chegar não conhecia. Não me mostraram qualquer imagem”.
Depois do briefing com o inspetor-chefe Rogério Bravo e o inspetor José Amador, na bomba de gasolina, os dois inspetores entraram, já Nélio Lucas e Pedro Henriques estavam sentados numa mesa do restaurante da área de serviço. Estava vazio: além deles apenas os empregados estavam no estabelecimento. “Nós escolhemos uma localização para controlar o espaço, garantir a segurança dos intervenientes e estar próximo o suficiente para, no caso de termos de intervir e avançar para a detenção, que essa movimentação fosse rápida“, explicou o inspetor.
A pedido do juiz-adjunto, Hugo Monteiro fez mesmo um desenho para mostrar onde estava sentado e como os intervenientes estavam dispostos na mesa. Estima que estariam a menos de três metros da mesa onde estavam os dois representantes da Doyen, aos quais se viria a juntar, pouco depois, Aníbal Pinto. Perceção diferente teve a inspetora Aida Freitas: em tribunal, disse que a distância entre as mesas era bem maior do que aquela que Hugo Monteiro exemplificou horas antes. Alertada pela juíza, disse apenas: “Como vê, uso óculos”.
Aníbal Pinto terá dito que representava o criador do Football Leaks, mas não mencionou o nome de Rui Pinto
Ao contrário do que afirmou Aida Freitas, o inspetor Hugo Monteiro reiterou várias vezes que o seu “interesse não era a conversa”, mas estar atento a “qualquer movimentação”. E, por isso, “só nos momentos em que o estabelecimento estava tranquilo” é que ambos estavam “atentos à conversa”. Ainda assim, esses momentos foram suficientes para que pudessem perceber que estavam perante um “encontro de negócios”.
Foi um encontro de negócios. Foi falado os contornos de um negócio em que Aníbal Pinto se apresentou como intermediário para um negócio de milhares: meio milhão a um milhão”, afirmou.
Aníbal Pinto, num tom de voz “normal”, terá dito que “representava uma pessoa jovem, capaz de hackear sistemas informáticos e responsável pelo Football Leaks e acessos ao Sporting“, de acordo com o inspetor ouvido. No entanto, garante: “Não ouvi o nome Rui Pinto”.
O encontro secreto entre o ex-advogado de Rui Pinto e a Doyen — com a PJ na mesa ao lado
Hugo Freitas, que trabalha na Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica há seis anos, explicou ainda que houve “uma questão de ilegalidade abordada por Nélio Lucas e Pedro Henriques em termos de saber se era crime o que estava a ser praticado”.
Afloraram diversas vezes, na conversa, que estavam a ser vítimas de crimes. Aníbal Pinto referia-se a como um negócio”, disse a testemunha.
A testemunha adiantou ainda que Aníbal Pinto foi a primeira pessoa a falar sobre dinheiro e que, percebeu, que o advogado teria uma espécie de “ascendente” sobre a pessoa que estava a representar — Rui Pinto, como se viria a descobrir mais tarde. “Há expressões que foram utilizadas, nomeadamente que conseguia controlar — agora sabemos quem é — o seu cliente. Expressões, da minha perceção, que parecia que tinha um ascendente, que balizaria o negócio”, acrescentou.
O inspetor estima que o encontro tenha durado “cerca de uma hora”. “As três pessoas saíram normalíssimas do estabelecimento e eu fiquei mais uns minutos”, disse, adiantando que “a proximidade à mesa permitir ouvir a conversa”. “Não houve detenção: não recebemos ordem [para avançar para a detenção], nem houve nenhuma entrega. Comunicámos ao inspetor José Amador, titular do inquérito, que entendeu pertinente e pediu que reproduzíssemos o que apurámos”, explicou ainda. O encontro não foi gravado, pelo menos pela PJ e pelo que Hugo Monteiro garantiu, e o que está relatado sobre ele foi precisamente o que os dois inspetores descreveram num relato de diligência externa — um documento que agora consta no processo.
Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, que entretanto desisitiu da queixa, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.
Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão porque terá servido de intermediário de Rui Pinto na suposta tentativa de extorsão à Doyen. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.
O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juiz Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.