[este artigo foi originalmente publicado a 26 de janeiro de 2021 e atualizado após a morte de Paula Rego, a 8 de junho de 2022]

Sempre que lhe era permitido, Paula Rego refugiava-se no seu estúdio. Por “permitido” queria dizer quando não estava doente – ou quando o país não estivesse doente, explicava a pintora que completaria 86 anos poucos dias depois desta conversa. Aqui referia-se à Covid-19: “É terrível quando não posso ir.”

A conversa aconteceu por e-mail e a propósito da exposição “Paula Rego/Josefa de Óbidos: Arte Religiosa no Feminino”, onde foi proposto um olhar sobre a obra das duas mulheres que mais se destacaram na história da arte portuguesa e que esteve patente na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais. O filho, Nick Willing, serviu de intermediário. E a artista, solícita, respondeu: lacónica, lapidar, em inglês.

“Sempre admirei o trabalho dela”, afirmou em relação a Josefa de Óbidos. “Costumava ser comum ouvir que as mulheres não podiam ser grandes pintoras, portanto ela era um exemplo que essa mentira não é verdade.”

Embora as suas obras não sejam comparáveis, a mostra de 115 peças de Rego e 21 pinturas de Josefa de Óbidos pegou no que as duas têm em comum: o facto de serem autoras independentes, visionárias e inovadoras. Mais: duas mulheres que exploraram a sua “irreverência artística” em torno do tema da religião.

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Josefa de Ayala Figueira nasceu em Espanha em 1630, mas aos quatro anos veio viver para Óbidos, terra natal do pai, o pintor Baltazar Gomes Figueira. Destacou-se pela pintura de retábulos (peça que fica acima ou atrás do altar), incluindo a série patente em Cascais dedicada à pensadora e mística espanhola Santa Teresa de Ávila. Diferenciou-se por se ter emancipado com o consentimento dos pais e nunca se ter casado.

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De Londres, onde se radicou de forma definitiva na década de 1970, depois de nos anos 50 ter estudado na Slade School of Fine Art, Rego falava da arte, não como uma forma de poder, mas uma forma de expressão. Um processo que, em termos de sentimento, tem qualquer coisa de religioso. “Permite-nos inventar coisas”, explicava. “É possível contar histórias de perspetivas invulgares. Invulgares do ponto de vista ortodoxo.”

A ideia ecoa nas representações iconoclastas em que tem humanizado figuras como a Virgem Maria. “Porque isso era o que elas eram”, atalha. “Eram humanas.” Naquele momento, e não lhe perguntem porquê, porque não saberá responder, estava a trabalhar “numa pintura da sagrada família.”

“A Arte Religiosa no Feminino” era apenas uma das três exposições de Rego patentes entre Portugal e a Irlanda naquela altura. As outras eram “O Grito da Imaginação”, no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira, e “Obedience and Defiance”, no IMMA, em Dublin. O prato forte estava ainda guardado para o verão com a maior retrospetiva do trabalho daquela que por vezes foi apresentada como “a maior artista viva da Grã-Bretanha”, na Tate Britain, em Londres. Rego estava, claro, “muito entusiasmada” (“thrilled”): “Espero viver para ver a retrospetiva na Tate.” Mais de 100 pinturas, colagens, esculturas e desenhos, produzidos entre a década de 1950 e a atualidade. Em paralelo, a sua extraordinária história de vida e a forma como esta influenciou o seu trabalho, do contexto socio-político ao lado mais pessoal.

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Ao longo da vida, Paula Rego falou várias vezes sobre as interrupções de gravidezes que se viu obrigada a fazer. O chumbo da despenalização no primeiro referendo em Portugal levou-a a criar uma série intitulada “Aborto”. Confessava-se preocupada com o caminho seguido em países como a Polónia e em alguns estados norte-americanos. “Não é agradável viver sob uma crueldade tão grande”, afirma. “Interesso-me por muitas coisas, mas sou uma mulher, por isso vejo as injustiças que as mulheres têm de suportar e tento destacá-las, de forma a ajudar.” Um interesse acima de tudo humanista. “Não me vejo como uma pintora feminista”, diz.

No final de setembro de 2021, uma das notícias que agitaram o mundo da arte foi a mudança de galeria de Rego, da Marlborough para a de Victoria Miro, conhecida pela seleção de obras de mulheres. Na altura, o jornal Financial Times referiu-se à pintora portuguesa como uma “radical de 85 anos”. No mesmo artigo, a própria Victoria Miro acrescentava outro adjetivo: “destemida” (“Ela acerca-se de assuntos difíceis, como o aborto ou o abuso sexual, e vai em frente.”) Mas o que tinha a própria “radical destemida” a dizer sobre estas atributos? “Gostava de ser assim, mas não o sinto.”