Os equívocos acerca do Marquês de Sade (Donatien Alphonse François, 1740-1814) são quase tão famosos como ele. Um dos últimos prisioneiros da Bastilha, figura mais óbvia nas coleções de literatura erótica, ilustre detentor de um substantivo derivado dos seus escritos, herói dos libertinos e dos pretensos iconoclastas, de tudo o que é perverso ou transgressor, malvado ou maldito Sade já foi apodado.

Seria, obviamente, ridículo tentar transformar A Filosofia na Alcova ou Justine em modelos pios de castidade e observância Cristã; no entanto, para perceber que Sade dificilmente contenta os olhares mais lúbricos, não são precisas grandes cambalhotas argumentativas – basta lê-lo.

O primeiro aspeto que salta à vista do leitor de Sade, particularmente dos 120 dias de Sodoma, é a imensa monotonia e a repetição dos processos. É certo que, mesmo para as mentes mais imaginativas, seria difícil cumprir aquilo a que os 120 (obra compreensivelmente inacabada) se propõe: num castelo no meio da Floresta Negra – o castelo de Silling – fecham-se quatro homens tão ricos como perversos, com uma fortuna conseguida à custa de assassinatos e extorsões, que juntam um imenso harém. Contudo, além dos escravos e escravas sexuais, chamam também quatro contadoras de histórias, que ao longo dos dias relataram seiscentas perversões sexuais, que os quatro homens se dedicarão a pôr em prática enquanto as ouvem, como se traduzissem em ato as palavras das historiadoras.

O que é curioso, no livro, é a intencional monotonia e mecanização das histórias. As práticas começam sempre à mesma hora, as descrições são praticamente as mesmas, de tal forma que a grande obra libertina parece, afinal, um engodo: há tanta repetição e um espectro tão limitado de vocabulário sexual nas descrições de Sade como na confissão de uma senhora bem comportada, prestes a alcançar as bodas de ouro. A libertinagem de Sade pouco tem que ver com desregramento, há uma observância e um rigor, “com muito de Espinosa”, como observa Deleuze, que o torna um fraco herói dos apóstolos contemporâneos do amor livre.

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Da mesma forma, entre os progressistas apaixonados pela ideia de um mundo tolerante, Sade também não deveria colher grandes simpatias. Afinal, o mundo do sexo livre, tal como o apresenta Sade, é o mundo em que a transgressão, a sodomia, a libertinagem, vêm sempre associados aos crimes mais infames, à violência e a tudo o que de mais infame poder impedir a normalização de uma vida sexual “livre”.

Sade não é um escritor erótico, não há tensão erótica nos seus enredos, as esperas, as subtilezas, o controlo do ritmo no despir e no vestir, a sua sexualidade é direta, bruta e o mais óbvio exemplo de anti-climax; ainda assim, a atração do mundo pela sua obra é quase universal, e a recente procura pelo manuscrito dos 120 dias de Sodoma, perdidos aquando da sua transferência da Bastilha para a prisão de Vincennes, só mais um exemplo. O governo francês pediu recentemente ajuda a privados para comprar o documento histórico, avaliado em 4,5 milhões de euros. O manuscrito esteve na posse da família do Marquês de Sade até 1982, quando foi roubado e vendido ao colecionador Gérard Nordmann. Em 2014 voltou a ser comprado por um fundo privado que o colocou em exposição, até que em 2017 foi classificado como Tesouro Nacional.

Note-se que não é com certeza a frequência dos temas sexuais a torná-lo um autor tão famoso: Sade está muito longe de ser um pioneiro, e muitas outras obras com igual teor sexual caíram no esquecimento. Há, em relação ao estranho Marquês, um incómodo constante que sobrevive àquele bocadinho de libido que excita a curiosidade por livros sexuais. O valor de Sade não está nem na especial mestria erótica, nem naquela atenção que é dada aos bandeirantes que, antes do tempo, se aventuram por ideias que são agora caras ao nosso tempo. Nenhum tipo de preferência sexual se sentirá representada pelas sinistras representações de Sade; no entanto, a sua obra persiste.

É verdade que, em certa medida, Sade é uma criação do século XX. Embora já houvesse alguma literatura médica que se lhe referisse, e fosse um nome conhecido do cânone maldito francês, a verdade é que a sua fama dá um salto de outra dimensão no século XX. E se a isso não terá sido alheio um controverso processo de edição (que, por cá, Pedro Piedade Marques se tem dedicado a estudar a propósito das Edições Afrodite), a verdade é que é na Academia que se dá uma espécie de ressurreição de Sade que lhe deu muita da fama que hoje tem. Há um primeiro estudo importante de George Bataille, haverá outro, sobre Sade e Sacher Masoch, de Deleuze, mas é a partir de Roland Barthes que se percebe melhor a dimensão que Sade ganhou.

Isto porque, no seu estudo sobre Sade, Barthes insiste na ideia de que o que é verdadeiramente revolucionário, em Sade, não é exatamente a profusão dos atos sexuais, nem sequer grandes revoluções sociais. É certo que o facto de muitas das vítimas preferenciais serem ricas, ou nobres, ou parte importante do clero, satisfaz os ânimos mais ressentidos; no entanto, este é só um aspeto convencional da ideia de transgressão. A ideia de vítima é, aliás, difícil de perceber no Universo de Sade. Porque embora o desejo de humilhar seja claro e seja, em parte um dos grandes fins dos atos sexuais, a verdade é que todos os sodomitas são também sodomizados, não há distinção entre ativos e passivos do ponto de vista puramente sexual, de tal modo que a verdadeira revolução de Sade não se dá pelo sexo mas pela palavra.

Aquilo que marca a distinção entre as vítimas e os carrascos é a posse da palavra. Nunca as vítimas estão autorizadas a falar, nem o sexo é verdadeiramente um ato de poder se não for convertido em linguagem, na linguagem dos vencedores.

Ora, esta ideia é especialmente importante para um Roland Barthes já fascinado com o método linguístico de Saussure, que encontra na linguagem a verdadeira tradução da sociedade e a estrutura fundamental dela, e será especialmente importante porque permite inverter a posição em relação a um dos pontos de vistas dominantes do mundo académico do seu tempo: Sade é, para Barthes, uma espécie de refutação de Freud e da Psicanálise. A prioridade da linguagem sobre o sexo, a ideia de que é a linguagem que dá ao sexo o significado, permite tornar a linguagem o ponto central do estudo do Humano. Deleuze, aliás, retomará a interpretação de Barthes, com a ideia de que em Sade a linguagem é o mecanismo de opressão, o mecanismo dos vencedores, e aquilo que verdadeiramente permite dominar os servos.

Numa espécie de boutade, Barthes costumava dizer que Sade devia ser ensinado na primária como um dos grandes exemplos da prosa francesa; e se a provocação é óbvia, também não deixa abrir uma pista para aquilo que, do ponto de vista da linguagem, mais interessa a Barthes. Sade não é propriamente um cultor do belo estilo; é, segundo Barthes, o criador de uma nova linguagem, em que os signos linguísticos têm significados novos, e que cria repulsa precisamente pela distância entre o mundo de Sade e o nosso. Sade é uma das primeiras fugas ao realismo literário, no sentido em que aquilo que escreve não quer representar nada: é verdadeiramente uma imaginação e que, por isso mesmo, tem códigos de significado que não são os nossos.

É essa distância, mais do que a representação do mal, que nos inquieta. O mundo em que o pão é deplorável enquanto símbolo máximo do trabalho honesto e em que o prazer não tem o sentido de liberdade mas de uma obrigação. Não será inteiramente justo chamar a Sade apenas o médico que diagnosticou o sadismo; mas o grande papel dos 120 dias de Sodoma não é moral, mas sim linguístico; o modo como as mesmas palavras conseguem significar coisas diferentes, como a alteração dos ritmos e dos significados simbólicos provocam uma estranheza tão nítida, esse sim é o grande papel de Sade.