No que diz respeito a produtos culturais, sou uma pessoa que às vezes se deixa convencer pelos rótulos garridos das embalagens. Por exemplo: tudo o que é britânico, eu meto na cabeça que tem mais qualidade. Muitos anos a crescer com aquela mítica intro da produtora Thames, que assegurava que vinha de lá uma pérola polida com cuidado e mestria. Talvez tenha sido, então, o sotaque a saber a Earl Grey que me fez entrar nos seis episódios de “Behind Her Eyes” (disponível da Netflix, com o nome “Por Trás dos Seus Olhos”, baseada no livro homónimo de Sarah Pinborough) com a certeza de que ia ver boa televisão. OK, o primeiro episódio é um bocado aborrecido, mas isto depois melhora, certo?
Este foi o primeiro sinal de alerta de que este thriller não iria, muito provavelmente, sobreviver ao hype: para produção britânica — e para aposta da Netflix com base num romance de grande sucesso – “Behind Her Eyes” tem as costuras dos baixos valores de produção demasiado à vista. A história segue o rasto de Louise, uma mulher divorciada com um filho pequeno, que não só se amantiza com o patrão, como desenvolve uma estranha amizade com a mulher deste. As várias cenas de sonhos que o plot exige (Louise sofre de terrores noturnos) parecem screensavers de Windows feitos por um caloiro da ETIC. O suspense, pontuado por vários momentos de sexo, lembra o “Instinto Fatal” – não no sentido de ir ser determinante para todo um género, mas porque parece que foi feito em 1993.
[o trailer de Por Trás dos Seus Olhos”:]
A desinspirada realização não ajuda naquela que é uma adaptação muito antecipada pelos fãs do género. “Behind Her Eyes” é fielmente baseado no sucesso literário de Sarah Pinborough, descrito pelo mestre do suspense Stephen King como “brilhante”, e foi entregue ao guionista Steve Lightfoot (com experiência no êxito da NBC “Hannibal” e na adaptação do universo Marvel, também para a Netflix, “Punisher”). Só que é muita parra e pouca uva, muita antecipação e fraca qualidade. “Behind Her Eyes” ganha borbotos muito depressa, é poliéster.
Alvíssaras, porém, para os atores. O cast, não sendo inexperiente, também não tem nenhum nome muito reconhecido. Porém, é competente e promissor. Simona Brown é a protagonista Louise; Tom Bateman é o seu patrão David; Eve Hewson (filha de Bono, vocalista dos U2) é a mulher de David, Adele; e Robert Aramayo é o amigo de Adele, Rob, que é visto em flashbacks do seu passado misterioso. Hewson, particularmente, navega com mestria entre ser a vítima ou a vilã, dando azo à teoria de que, um dia, Bono é que vai ser conhecido como “o pai da Eve Hewson”.
Apesar deste texto se pautar pela deontologia de não estragar séries a ninguém, é impossível escrever sobre “Behind Her Eyes” sem mencionar o grande twist final (ou duplo twist), que divide opiniões. Se é surpreendente? Muito. Mas é surpreendente porque corrompe totalmente a lógica interna até então. Ter uma série de seis episódios que a meio do quarto capítulo muda de género é quase desleal para com o espectador. A sensação é de que alguém nos quis levar a sair num date romântico, nos disse para nos vestirmos com roupa de gala e depois nos levou para um ringue pavimentado a gelatina de pêssego para um combate de wrestling. Claro que surpreende, mas à custa de um jogo de expectativas brusco e simplesmente bizarro.
Esta bizarria permite, preguiçosamente, que a série não se dê ao trabalho de resolver várias incongruências das personagens, das narrativas e até os detalhes da investigação de um crime (há uma cena com uma carta para a polícia escocesa, perto do fim, que é no mínimo absurda), já que as fundações nas quais estavam alicerçados os primeiros dois terços da história são arrancadas e substituídas por outras. Claro que há pequenas pistas deixadas aqui e ali que formam todo um novo puzzle, mas não era o que dizia na caixa.
Depois da desilusão generalizada com o final previsível do até então envolvente thriller “The Undoing” (série da HBO com Nicole Kidman e Hugh Grant), “Behind Her Eyes” tenta fazer diferente ao querer apenas dar-nos um pontapé na nuca com um final que não adivinharíamos. Se resulta numa mini-série melhor? Nem por isso, apesar de ser mais insossa do que terrível. Mas se já começou a ver, ao menos que chegue à gelatina de pêssego do final. Logo descobre se lhe caiu bem.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa