Título: A Lua e as Fogueiras
Autor: Cesare Pavese
Editora: Livros do Brasil
Páginas: 160
Preço: 15,50€

A capa de “A Lua e as Fogueiras”, de Cesare Pavese (Livros do Brasil)

Publicado pela primeira vez em 1949, este romance de Cesare Pavese é agora reeditado em Portugal pela Livros do Brasil. Aqui, a acção gira em torno de uma personagem que regressa a Santo Stefano Belbo, de onde partiu em nova para a América. Após a segunda guerra mundial, o rapaz, já homem de meia idade e rico, regressa a Itália, fixando-se em Génova.

O homem tem a particularidade de nunca ter conhecido os pais, e de ter sido, em criança, posto para a roda dos enjeitados. Nessa altura, foi adoptado por uma família dos arredores de Canelli para receber a renda de cinco liras por mês, paga pelo Estado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em adulto, começa a pensar em comprar um pedaço de terra em Belbo, numa altura que já não tem a família adoptiva. Talvez tendo um pedaço daquela terra possa firmar um vínculo com o lugar de onde vem. Ali chegado, confronta-se com o passado, com as memórias a trabalhar no campo, numa altura em que já pode ser patrão. A paisagem parece igual, mas tudo está transformado – como é apanágio da acção do tempo sobre memórias cristalizadas:

“Era estranho como tudo estava mudado e no entanto igual. Nem uma das videiras antigas tinha ficado, nem um animal; agora os campos eram restolho e o restolho vinhedos, as pessoas tinham passado, crescido, morrido; as raízes esboroadas, arrastadas para o Belbo – e no entanto, olhando em volta, o enorme flanco de Gaminella, os pequenos carreiros ao longe nas colinas do Salto, os pátios, os poços, as vozes, as enxadas, tudo continuava igual, tudo possuía aquele cheiro, aquele gosto, aquela cor de então.” (p. 39)

Depois de vinte anos na América, procura a Itália rural da sua juventude. Percorre as ruas que conheceu em criança, mas a guerra meteu-se entre elas, e entre aquela gente, e também o tempo passou. O que parece igual está mudado – a imagem é a mesma, a vida é outra. E o narrador quer a segurança de uma âncora:

“Corri mundo o suficiente para saber que todas as carnes são boas e se equivalem, mas é por isso que a gente se cansa e procura ganhar raízes, ter terra e um lugar, para que a sua carne valha e dure alguma coisa mais do que uma vulgar mudança de estações.” (p. 15)

“É preciso ter uma terra, mais que não seja pelo gosto de a deixar. Uma terra quer dizer não estar só, saber que nas pessoas, nas plantas, no chão há alguma coisa de nosso, que mesmo quando lá não estamos fica à nossa espera.” (p. 18)

Intui-se desde o início a solidão e o desfasamento de quem se desprendeu das raízes. E o narrador ali chega perdido na armadilha do saudosismo. Está em busca de alguma coisa, e procura-se a si mesmo no passado, estando neste romance a procura da relação do homem com o lugar – e a família – de onde vem. Contudo, o descompasso entre a expectativa e o que vê é evidente:

“Compreendi ali mesmo o que quer dizer não ter nascido num lugar, não o ter no sangue, não estar ali já meio enterrado junto aos velhos, de tal modo que uma mudança de culturas não importe.” (p. 17)

Saiu dali para enriquecer, o contraste entre si e quem fica é evidente, mas o apelo de voltar ao ninho venceu o mundo que teve a possibilidade de ter, e isto apesar de se ver agora confrontado com a impossibilidade de encontrar tudo como estava. Passadas décadas, e depois de ter visto tanto, viajado tanto, todos os sítios lhe parecem diferentes, e tanto mudou com a segunda guerra mundial. O próprio olhar dele já foi entretanto transformado – transtornado – pela vida.

No regresso, existe o confronto entre o olhar da primeira vez e o olhar alterado pelo tempo e pela experiência. Após a guerra, pouco parece restar do que parecia coisa rija, e encontram-se as cinzas das fogueiras. O povo, que é o mesmo, também mudou: há ódios escancarados, ideologias cristalizadas, a mesma pobreza. E, no meio, Nuto, o amigo que o narrador reencontra depois de 20 anos de ausência, a quem contrapõe o seu olhar. Com ele, percorre a terra, e as ruas trazem as memórias de outros tempos, ao mesmo tempo que as cicatrizes da guerra, os ódios criados, as angústia de um povo perante uma paisagem que parece sempre igual. Daí o transtorno: a aparente imutabilidade traz sempre o baque da mudança. Com Nuto, Pavese consegue contrapor o carácter deambulante de quem partiu da terra à angústia de quem está preso a ela. Contra o deslocamento de um lugar, as repetições do outro.

“Longe de casa trabalha-se porque tem de ser, faz-se fortuna sem querer – fazer fortuna quer dizer precisamente ter ido para longe e voltar assim, rico, grande e gordo, livre. Em novo não o sabia ainda, e no entanto tinha os olhos sempre postos na estrada, nos passantes, nas villas de Canelli, nas colinas no horizonte. É assim o destino, diz Nuto – que ao contrário de mim não se mexeu daqui. Não foi pelo mundo fora, não fez fortuna. Podia ter-lhe acontecido o mesmo que a tantos outros deste vale – de crescer como uma planta, envelhecer como uma mulher ou um bode, sem saber o que se passa além da Bormida, sem sair do giro da casa, da vindima, das feiras. Mas também a ele que não se moveu aconteceu alguma coisa, um destino – aquela sua ideia de que é preciso compreender as coisas, endireitá-las, de que o mundo está mal feito e que toca a todos mudá-lo.” (p. 45)

Finda a leitura, fica a fazer mossa a errância de quem emigrou, a procura de mundo, a fuga das raízes, de uma vida estática, confinada a metros. É que partir implica poder ver para além da curva, não aceitar o fatalismo dos limites, poder concatenar, relativizar.

A Lua e as Fogueiras será sobre a vida deambulante de alguém que não sabe bem de onde vem. Intimista, a narrativa está imbuída do relato das relações sociais de uma vila rural, e o fim da guerra aparece como uma continuidade da vida, não como o rompimento das ideologias que a provocaram. O narrador não conhece a terra onde cresceu – e, volvidos anos, o que conhece está diferente. Não conhece a família biológica – e falta-lhe esse sentimento de pertença. Perdeu a família adoptiva – é uma corda atirada ao mar sem âncora. Arrancadas as suas raízes, permanece um fundo de beleza que é o sabor da nostalgia, ao mesmo tempo que uma solidão de quem procura o que não há e a sensação de que a vida é volátil.