Numa enorme mesa branca desdobrável, ao centro, faz-se choco frito. E não é um choco frito qualquer, é daquelas receitas de família, com segredo, truques que não se partilham e que eram motivo de romarias diversas à Taberna da Irene, na Cova da Piedade, em Almada. Estávamos ainda nos anos 30 do século passado. Irene era bisavó de Ana Rita Ferreira, neta de Fernando Pereira, almadense antifascista, primeiramente ligado ao PCP e mais tarde, no exílio, ligado à LUAR — Liga de Unidade e Ação Revolucionária, até ser preso. Além do choco frito, a Taberna da Irene era também albergue de muitos fugitivos da Guerra Civil Espanhola. Fernando Pereira não tinha como não ser da resistência.
Ana Rita Ferreira é uma filha do mal. Tal como são outros cinco não-atores que o Hotel Europa — estrutura de criação de André Amálio e de Tereza Havlíčková, que tem centrado o seu trabalho na reflexão sobre o colonialismo português — resgatou através de workshops gratuitos. Os Filhos do Mal, no São Luiz, é o segundo capítulo de uma série que começou em 2019, na Culturgest, com o espectáculo Os Filhos do Colonialismo, e que se centra na exploração da relação que as gerações que cresceram após 1974 têm com o Estado Novo.
“Seguimos um bocado aquele modelo que tínhamos feito n’Os Filhos do Colonialismo, que é o primeiro capítulo desta série, e então fizemos uma call para workshops gratuitos de pessoas de ambos os lados da barricada — pessoas da oposição e da resistência e pessoas que eram apoiantes do regime — e a partir desses workshops feitos em outubro, novembro e dezembro fizemos um novo, já com uma seleção, onde chegámos a este grupo de pessoas”, explica André Amálio.
Além da Ana Rita Ferreira, vemos Rita Tomé Feteira — cujo avô, Albano Tomé Feteira, foi um dos herdeiros do grande império das Limas Tomé Feteira, um complexo industrial em Vieira de Leiria que tinha ligações óbvias com o Estado Novo e cuja dimensão internacional tinha alcance nos regimes ditatoriais de Franco e Mussolini; vemos Paulo Quedas, filho dos cantores Samuel Quedas e Maria do Amparo, ambos importantes membros da resistência antifascista, sobretudo pela via da canção; vemos Ana Sartóris, filha de Vítor Lima, membro do PCP que foi preso após a famoso denúncia de Augusto Lindolfo, alto responsável do PCP no início dos anos 70 que dá à PIDE/DGS o nome de mais de 100 camaradas; vemos João Esteves, sobrinho de Fernando Alves Esteves, soldado que fez parte daqueles que concretizaram a Revolução dos Cravos e que foi motorista de Otelo Saraiva de Carvalho; e vemos Marta Salazar Fernandes, cujo tio-avô Augusto Rodrigues, membro do PCP, se infiltrou na Prisão do Aljube como enfermeiro para libertar o então líder do PCP, Pavel [pseudónimo de Francisco de Paula Oliveira], com quem viria a fugir para o México, depois de suspeitas sobre o mesmo e de uma mudança na direção do partido.
Filhos do mal não faltam. E como clarifica André Amálio, desde cedo se tornou evidente que seria algo estranho, ou pelo incompleto, não ter gente dos dois lados da barricada: “Para nós era muito importante. Era, digamos, a definição do projeto, ter pessoas de ambos os lados da barricada e que pudessem estar em palco a falar sobre isso e que pudessem olhar criticamente a história. Era ponto assente para nós que não queríamos pessoas que, de alguma maneira, tivessem uma nostalgia ou uma romantização do que tinha sido a ditadura. Depois de termos as pessoas, uma das questões principais que decidimos foi tentar ter histórias de diferentes alturas da ditadura, no fundo para mostrar como foi longo, como foram estes 48 anos, e sentir, nas diferentes épocas, as diferentes tonalidades do regime.”
Além do choco frito, de cerveja, de vinho, Os Filhos do Mal prossegue a dimensão documental do teatro do Hotel Europa. Na esquerda alta temos uma espécie de arquivo, depósito onde os intérpretes vão buscar as fotografias da sua família, os diários, os aerogramas, os pedaços de história que projetam na tela gigante no fundo do palco. Na direita baixa, o já habitual recanto expositivo, onde se mostram as fotografias e cartas, artefactos que depois aí se depositam e guardam à vista do público, como se de um monumento se tratasse. “A ideia passa exatamente por ter dois arquivos, um arquivo onde estão depositadas todas aquelas coisas, um arquivo castanho, sépia, onde está esta coisa antigo e por outro lado é o arquivo que nós selecionamos, é como se ali estivessem todas as coisas, mas há umas que nós selecionamos para colocar numa espécie de arquivo-montra, onde as coisas ficam expostas, onde fazemos uma instalação da história que vivemos”, admite o criador.
Esse arquivo primordial, ao fundo, é decorado a um castanho sépia, e serve também efeitos de ecrã, uma vez que também aí se revelam vídeos históricos ou familiares, sob um papel de cor velha, de amplitudes diferentes, algo que faz dele “um ecrã disforme, como é a memória”, garante Amálio.
Mas e afinal, que mal é este? “Este espectáculo parte deste título, Os Filhos do Mal, para nós isso é também uma questão política, de dizer sem dúvidas que esta matéria histórica é o mal. Achamos que muitas vezes isto não é dito desta forma, não é assumido às claras, não há qualquer dúvida na história alemã que o nazismo é o período do mal, e parece que em Portugal há, às vezes, essa neblina. O mal tem um efeito concreto em quem está a apoiar e a beneficiar dessa ação, mas também em quem está a resistir e a lutar contra ela. De geração em geração, isto contamina-nos, acaba por ser um mal que não desapareceu. É aí que queremos ir, tal como n’Os Filhos do Colonialismo, entrar pelas gavetas da história das nossas famílias, mostrar as fotografias, fazer telefonemas, contar esta história melhor. E foi esse processo que cada um fez individualmente com a sua família. E foi muito interessante perceber como fazíamos uma cena num dia e no dia seguinte ela mudava porque alguém chegava e dizia ‘afinal não foi bom assim, estive a falar com o meu pai.’”, conta.
O aroma da pós-memória de Marianne Hirsch — que já havia estado presente n’Os Filhos do Colonialismo e em todo o trabalho do Hotel Europa — regressa a cena. Sente-se no choco frito, num áudio de WhatsApp que Maria Amparo envia ao filho Paulo Quedas a cantar uma música, na imagem e nas palavras de Rita Tomé Feteira sobre o Largo da Igreja de Vieira de Leiria, nos óculos de sol de Fernando Alves Esteves, tio de João Esteves. Como podemos perceber, a pós-memória não se faz de um só jeito. Pelo contrário, assume diversas manifestações. O que importa é que se manifeste, de um lado ou do outro: “Num momento em que a sociedade portuguesa está a ficar profundamente polarizada, como é que estes dois polos opostos podem conversar, como é que estas heranças de pós-memória dialogam connosco, os nossos pais e os nossos avós podem não ser capazes de conversar sobre isto, mas nós temos de ser capazes de conversar sobre isto”, afirma André Amálio.
O mesmo que se apressa a declarar que também lhes interessou trazer para palco estas pessoas, que consigo carregam a memória de outras, que ficaram meio arredadas dos grandes momentos da história portuguesa, ainda que nela tenham sido atores:
“Há esse lado muito bonito de trazer para a história e para a memória pessoas que acabaram por não fazer parte dela, pelo menos não de forma óbvia ou mediática. Não estamos a falar do Pavel, nem do Palma Inácio, nem do Otelo Saraiva de Carvalho, ou do Salgueiro Maia, estamos a falar daquelas pessoas que são como que ‘personagens secundárias’ e que fizeram a história.”
Também através do movimento, trabalho mais a cargo de Tereza Havlíčková, se tenta apanhar a memória. Há coreografias que se repetem, gestos que se arredondam, urras da Legião Portuguesa, ondas que atravessam os braços. E uma outra coisa que tanto se impõe: a ideia de marcha. “A marcha relaciona-se com a época, muito militar, a Legião Portuguesa, a Guerra Colonial, não nos podemos esquecer que se foram os militares que fizeram a revolução, foram também os militares que mantiveram Salazar no poder e o Estado Novo no poder durante 48 anos. Foram os generais, os marechais, é toda essa ideia de marcha, de disciplina, de conservadorismo que está ali presente”, enquadra.
E não há como, no lugar de espectador, revisitar episódios recentes, ironias da atualidade, antagonismos que estão na ordem do dia da sociedade portuguesa: a herança colonial e a relação com esse legado. Os Filhos do Mal abordam esse discurso que se quer evitar. Mas afinal, o que mudou nesse sentido desde a última vez que quem escreve estas linhas e André Amálio conversaram em setembro de 2019?
“Estas questões estão muito mais a ser debatidas, mas por outro lado há medo de dar mais passos para que a história seja olhada como ela deve ser, sem romantizações, sem mentiras, colocando os nomes nas coisas, sinto que esse caminho está com mais atrito do que estava em 2019. E sinto que desde comecei este trabalho em 2015 que as coisas foram ficando mais difíceis, quando se começa de facto a avançar e a fazer coisas concretas, obviamente que mais tarde ou mais cedo há também forças que estão contra esses avanços. Isso teve um grande avanço com o Trump nos EUA e apesar de o Trump se ter ido embora todo esse tsunami trouxe repercussões para todo o mundo. Também já temos o Trump à portuguesa”, diz o encenador.