O poeta japonês Kamo no Chomei, século XIII, contemplando o mundo da sua exígua cabana, escreveu uma reflexão sobre a brevidade da vida humana e a sua grande tarefa de construção de uma força interior que lhe permite vencer todas as catástrofes. Um poema que é uma lição de estoicismo e despojamento que intitulou de Hojoki e que Jorge Sousa Braga traduziu para português neste ano de catástrofe. Um canto de combate à adversidade através da força moral, avesso a qualquer sentimentalismo, expurgado de  qualquer  contrato de simplificação para leitores relutantes. Aliás, leitores relutantes nunca foram o público de Jorge Sousa Braga, pelo menos desde 1983, quando editou na Fenda o livro De Manhã Vamos Todos Acordar Com Uma Pérola no Cu, onde estava o seu famoso poema Portugal [estou loucamente apaixonado por ti], que teve honras de ser lido, na RTP, pelo brilhante Mário Viegas (que pode ser visto aqui).

Não se deixando afogar pela lisonja que este poema lhe trouxe, com apenas 22 anos, o poeta, que nasceu na aldeia de Cervães, em Vila Verde, filho de um alfaiate e de uma costureira, que esteve para se tornar padre, também não alimentou a persona rebelde e insurgente que este livro prometia. Fez-se médico, ginecologista e Obstetra, no hospital de S. João, no Porto, dedicou-se à tarefa de trazer novas pessoas a este mundo, tornou-se o poeta contemporâneo que mais tem escrito poesia sobre o corpo feminino, os seus segredos, fluxos, magias fazendo o artista e o médico coincidirem num universo sempre em mutação, onde ele é apenas “um planeta errante”.

A sua liberdade materializa-se numa obra que não se repete, cada livro é único e de constante só mesmo uma relação próxima com a natureza na sua indomesticabilidade e a ironia. Em 2020 publicou a obra Matéria Escura onde escreve sobre a solidão humana num infinito cosmos, visando também lembrar-nos da nossa condição de cometa que atravessa os céus abrindo um fogo-fátuo antes de desaparecer para sempre.

A propósito de Portugal, de poesia e fertilidades várias, o Observador teve uma conversa com o poeta, onde não faltou a sua espirituosa ironia.

“Hojoki, reflexões da minha cabana”, de Kamo No Chomei foi traduzido por Jorge Sousa Braga e será publicado em breve pela Assírio & Alvim

Tinha 22 anos quando escreveu o poema Portugal, era o início dos anos 80. Não sente que há muita gente que nunca foi capaz de ultrapassar esse poema Portugal? Que ele lhe ficou colado e muitos leitores não acompanharam a progressiva complexidade e densidade da sua poesia nestes 40 anos.
Há poemas que nos ficam colados à pele e isso não é necessariamente mau. Salvaguardando as distâncias, quando me lembro do Drummond de Andrade, o poema que me vem de imediato à cabeça é o da pedra no meio do caminho. O Drummond deve ter passado a vida a tropeçar naquela pedra e a praguejar. Poderia apresentar outros exemplos como este. Grave é pensar num poeta e ninguém se lembrar de qualquer poema ou verso da sua autoria.

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Ainda se revê nesse poema? Ainda revê Portugal nesse poema?
Já não tenho vinte e dois anos. Portugal também já não é o mesmo. Mas a ternura pelo meu país  permanece a mesma. Apesar da sua provecta idade, dos seus traumas, das suas debilidades. Continuo a rever Portugal nesse poema.

O seu pai era alfaiate, o Jorge vem de um meio materialmente pobre, mas suficientemente rico para lhe ensinar a ser livre: abandonou o seminário, não está atado a grupos de poder, não se passeia pelos salões… o que lhe ensinou essa família, esse pai que adorava os seus livros, essa vida difícil num país que não investe na cultura do seu povo?
O meu pai era alfaiate e a minha mãe era costureira e sempre lutaram para que eu e os meus irmãos tivéssemos as oportunidades que eles não tiveram. Fui criado ao colo de aprendizes de alfaiate e de costureiras. O meu pai fez a quarta classe já adulto, para poder tirar a carta de condução. Mas sabia de cor poemas inteiros do Guerra Junqueiro. E gostava muito de teatro.

Houve uma altura em que estivemos para emigrar todos para os Estados Unidos. Estava tudo pronto (passaportes e visas) e à última hora o meu pai desistiu, porque não se via a trabalhar por conta de outrem. Não sei o que seria agora, se tivéssemos emigrado. O meu pai gostaria, se as condições familiares o tivessem permitido, de ser advogado. À conta disso tenho dois irmãos advogados. Eu escapei.

Quando sentiu que a escrita, a escrita poética era algo de que precisava para se relacionar consigo e com os outros, que fazia parte do seu “estar no mundo”?
Sempre fui muito contemplativo. Em criança costumava perder-me nos pinhais perto da minha casa. A poesia impôs-se seriamente depois dos catorze, quinze anos (apesar de algumas tentativas mais precoces) e passou a fazer parte da minha vida e, espero eu, a fazer parte da vida dela, com as suas angústias, as suas dúvidas, a descoberta de outros poetas e o fascínio, que se mantêm até agora, por alguns.

Conta que o seu primeiro poema, ainda na infância, foi sobre o Eusébio? Ainda é do Benfica? E vê futebol como potencial poesia?
Todos os miúdos tentam escrever quadras. No meu caso foi sobre o Eusébio.. A paixão pelo Benfica mantém-se até agora.  Mas a descoberta da poesia foi posterior. O futebol, como tudo, tem potencial poético (muitos e excelentes poetas modernos têm poemas sobre futebol). Hoje em dia raramente vejo futebol.

Também é médico, obstetra. Médico e poeta quando tantas vezes as ciências exatas parecem ser a antítese da poesia. Mas naquilo que escreve as duas cruzam-se, fundem-se com desembaraço. Na sua cabeça esses dois universos são inseparáveis como se pode ver na sua poesia?
Não há o médico e o “poeta”. As duas coisas confundem-se no dia a dia. O olhar é que pode variar. Um mais objetivo outro menos objetivo, por vezes enevoado.

Porque não experimentam deixar-se conduzir pelos próprios pés? Não tenham receio.

Os pés preferem esses caminhos de que ninguém – a não ser as cabras – se serve ainda. Talvez os anime o mesmo espírito dos salmões quando, na altura da desova, procuram as primeiras e definitivas águas.

[Os pés em Sangue, do livro Boca do Inferno]

O corpo feminino é a sua matéria-prima e tantas vezes a sua matéria poética. Teve uma educação católica, estudou num seminário, hoje é obstetra, faz partos. O que pensa da figura da virgem Maria, e do culto da virgindade pelo catolicismo, quando isso é antagónico com a ideia de vida, de renascimento, de natureza tão cultivados na sua poesia?
Quando era pequenino rezava fervorosamente à Virgem Maria, num local inundado de rosas. Talvez sem o saber continue a rezar ainda. Há muito tempo que deixei de ver a Virgem Maria e desconheço se ainda continua virgem.

Podemos fazer uma aproximação entre o dar a luz um poema e o trazer ao mundo uma criança? São coisas que se assemelham ou não há na poesia nada que se assemelhe à violência de um parto?
O parto corresponde à expulsão do feto. Durante milénios a gravidez reduzia-se ao parto. Mas a gravidez começa muito antes com a fertilização de um ovócito por um espermatozóide, da viagem do embrião através da trompa, até se fixar no útero. É possível hoje em dia fazer um vídeo dos primeiros dias após a fertilização, antes da transferência para o útero, nos casos de procriação assistida. Segue-se uma série de semanas, em que através da ecografia podemos visualizar o feto. E assistir ao seu progressivo desenvolvimento e diferenciação e às suas reações a estímulos. O parto é apenas mais uma viagem, de escassos centímetros, importante sem dúvida e potencialmente perigosa, porque esses minutos podem condicionar a nossa vida para sempre. Com os cuidados atuais, cada vez o parto é menos violento. Às vezes o poema pode ter também uma longa gestação. Pode ser complicada a sua génese, sendo necessária qualquer coisa parecida com um forceps ou uma ventosa, para que veja a luz. E pode deixar cicatrizes (evidentemente que não nos mesmos sítios). Mas nunca ouvi um poeta aos gritos para parir um poema.

Desde a antiga Grécia, passando por religiões panteístas ou monoteístas os fluídos do corpo da mulher sempre foram um anátema, especialmente o sangue menstrual. O JSB transforma isso em poema. Porque é que tantos milénios depois isto ainda é um tema perturbante, onde não entram nenúfares (ao contrário da sua palestra)?
São poucos os animais que menstruam (para além da mulher, uma espécie de orca e poucos mais). Aliás desconhece-se qual a vantagem evolutiva da menstruação. Mas existem imensos mitos relacionados com a menstruação. Não são só os homens que sempre tiveram dificuldade em abordar esse tema ou usar essa palavra. As mulheres também. Só no século vinte e particularmente nas últimas décadas é que as mulheres se assumiram por inteiro, sem áreas vedadas, em termos de criação poética. E há belíssimos poemas sobre a menstruação, os abortos, a gravidez e o parto. Uma das áreas que é menos explorada em termos poéticos pelas mulheres são as mamas. Exceto no que se refere ao aleitamento. Talvez devido à alta prevalência do cancro da mama nas mulheres.

O que pensa dos tabus que ainda hoje persistem, apesar da poesia, por exemplo do Herberto Helder ou da sua, em relação ao corpo das feminino; sexuado e reprodutivo, como a amamentação em público, por exemplo?
Esta pergunta faz-me lembrar um verso muito conhecido do Herberto (“”Dai-me uma mulher jovem com  sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. Com ela encantarei a noite.”. Este verso acaba por ser muito discutível, quanto mais não seja porque as mulheres não se “dão”, nem como liberdade poética. Para além disso, cada vez há menos mulheres com harpa de sombra. Não há dúvida no entanto, que se caminhou imenso nas últimas décadas. Isto é, as mulheres caminharam imenso, na sua afirmação como mulheres, na afirmação do seu corpo e na destruição dos tabus associados. A maioria das vezes sozinhas. Mas não podemos esquecer que há zonas do globo onde a situação degradante das mulheres ainda se mantém.

A Matéria Escura é o mais recente livro do poeta Jorge Sousa Braga, hoje mais apaixonado pela Terra e pelo cosmos do que por Portugal

Os anjos (para além da imagem convencional que o catolicismo lhes deu) são figuras recorrentes que atravessam a sua poesia. O que há de tão poético nos anjos?
Os anjos não atravessam apenas a minha poesia, mas a poesia da maioria dos poetas modernos. É raro um poeta moderno que não tem um poema sobre anjos ou em que os anjos se atravessam no poema. O que têm os anjos de tão poético? O Jorge Luís Borges respondeu muito bem a esta pergunta: “são as últimas divindades que nos restam e como se não bastasse, voam”.

Apesar da sua poesia se ter iniciado com o homem face ao tempo e à historia (poema Portugal), hoje ela tomou como foco a relação do homem com o espaço. O mundo vegetal, mineral, animal, as culturas de outras geografias, tudo parece fazer de si um poeta do espaço. O que pensa disto?Sente mais necessidade da terra ou do céu?
Sempre tive uma ligação muito forte com a natureza. Seja a terra ou o céu. Há uma coisa que sei: não sou um poeta “mental”. E não conheço mestres. Revejo-me por inteiro no haiku do Basho: “Lua e flores:/os verdadeiros mestres/delas mesmas”

Apesar de se considerar um poeta “da tribo do Manuel António Pina”, não sente que se criou ou está a criar em torno dele um unanimismo que só pode ser-lhe fatal? Porque é que se esquece tantas vezes que o Porto tem outros grandes poetas como o Egito Gonçalves, o António Reis, o Jorge Sousa Braga?
Falei em tempos de uma tribo (que existe também hoje em dia e continuará a existir) de poetas, que viviam e vivem no Porto e de que fazia parte o Manuel António Pina e também o Egipto Gonçalves e muitos outros. Durante muitos anos o poeta que suscitava uma certa reverencia era o Eugénio de Andrade. Depois da morte deste, o Manuel António Pina não chegou a ocupar esse lugar. Nem a sua personalidade se prestava a isso. Era apenas mais um entre os outros poetas. Para mim não era só mais um, porque para além de poeta, era meu amigo. É um poeta que não tem (e nunca cultivou) epígonos. No lugar onde se encontra agora deve-lhe ser indiferente o que fazem com os seus poemas. E com o potencial unanimismo em torno deles.

Por onde andou nestas décadas? Dê-nos um mapa da sua viagem. Que filmes, que livros, que paisagens, que poetas fizeram de si o que é hoje, e que é um homem muito diferente do jovem que escreveu “Portugal”?
Vivo no Porto. O Eugénio de Andrade dizia que vivia no Porto como se vivesse na Ilha do Corvo. Não é o meu caso. Foi aqui que me formei em Medicina. Foi no Hospital de Santo António que me especializei em Obstetrícia e Ginecologia. Foi no Porto que me apaixonei. Foi aqui que nasceram os meus filhos. A cidade vai-se infiltrando em nós, sem que nos demos conta. Estes anos estão juncados de filmes, de cineastas (Bunuel, Pasolini, etc…), de pinturas, de livros, de amigos, de poetas (Walt Whitman, Basho, William Blake, Rimbaud…) e de poemas. E de pores do sol na Foz. O exercício da profissão é tão absorvente, que de súbito, muito de súbito apercebes-te que tens 63 anos. Que foste escrevendo alguns poemas, muito de longe a longe, que apesar disso já fazem um tijolo demasiado grande para o teu gosto.

Continuo todavia a surpreender-me quase todos os dias com as maravilhas da criação, ou não trabalhasse também na área da procriação assistida. Acho que a nossa grande capacidade é esquecer. Às vezes interrogo-me e fico surpreendido com aquilo que já esqueci. Acho também que o passar dos anos não nos faz mais sábios. Embora mantenha sempre a vontade de aprender.

Em 2020, publicou o livro “Matéria Escura”, onde o cosmos lhe serviu para falar da nossa efémera passagem por aqui. Constelações, aterragem em Marte, tanta tecnologia ou como diria o Jorge “tanta conexão, tanta solidão”.  Sente que a hiperconectividade, a compulsão para a comunicação via instrumentos tecnológicos está a deixar-nos mais solitários e mais pobres de experiências que o homem antigo, que caçava na savana e falava a linguagem mineral da natureza?
A Matéria Escura foi um pretexto para, servindo-me de uma coisa que não se sabe se existe, mas que faz sentido que exista, falar do nosso lugar no nosso planeta e por último no cosmos. Falar da transitoriedade da nossa passagem pela terra e da transitoriedade de tudo, inclusive do universo. A poesia tem muita “matéria escura” que impede que as palavras do poema se afastem até se desintegrarem, da mesma forma que as galáxias. A tecnologia pode ampliar a conectividade com as outras pessoas. Ampliar os nossos conhecimentos, mesmo no que diz respeito à poesia. Tudo depende da forma como se usa essa tecnologia.

A astronomia também o interessa, como a botânica, a geologia, as cidades, os corpos. Mas menos provocador, menos irónico neste livro do que na sua obra anterior. Está a ficar uma pessoa séria ou apenas mais melancólico?
Ao ler alguns livros de astrofísica (por exemplo do Carlo Rovelli), sinto-me como se estivesse a ler um livro de poemas. Estão lá todos os recursos que podem ser utilizados na construção de um poema. Um deles, fundamental por vezes: a capacidade de nos dar um grande nó cego. A ironia continua presente na minha vida diária. E na poesia. Talvez não tão evidente agora. E o humor. Esse sim, talvez um pouco melancólico.

Escreve em “Matéria Escura” que “a velocidade da produção de estrelas decaiu nos últimos milhões de anos”. Há umas semanas foi publicado um estudo que indica também estão a diminuir os espermatozoides e a fertilidade feminina. Acha que os dois acontecimentos estão ligados? Estamos à beira da extinção?
Acho que caminhamos para lá (a extinção). Espero que ainda falte muito. A diminuição da qualidade dos espermatozóides é um facto, mas tem mais a ver com coisas bem terrenas, como a comida e o ambiente. O caso das mulheres é diferente: tem a ver fundamentalmente com um desajuste entre a idade ideal para engravidar e a idade possível no tempo em que vivemos. Muita coisa mudou, mas não a biologia.

Não acha que há na vida uterina e na vida do cosmos muitas e fascinantes semelhanças? Ainda somos, nós humanos, um livro fascinante de ler?
Tanto ao nível do infinitamente pequeno como do infinitamente grande, continua imenso por descobrir, imenso por ler e antever. O feto tornou-se mais acessível, mas mesmo assim mantém-se a uma distância de segurança, que será muito difícil de quebrar. É preciso não esquecer que, como dizia um colega meu, o homem chegou mais cedo à lua do que a alguém que dista alguns centímetros da sua mão.

Sou um planeta errante que não está na órbita de qualquer estrela e flutua livremente pelo espaço sideral”, escreveu num poema de Matéria Escura. Quem tem acompanhado a sua obra e a sua vida sente que isto é verdade. Num meio cultural tão demarcado e controlado por grupos e poderes, sente-se que há em si uma enorme liberdade e distância face a tudo isso. Fale-nos dessa liberdade e dessa errância cósmica.
Eu preciso da poesia para sobreviver, e quando digo sobreviver, evidentemente que não me refiro ao aspeto financeiro. Escrever é um ato solitário e que exige liberdade. Daí a metáfora do planeta errante, que não orbita ao redor de qualquer estrela. Escrever poesia acaba também por ser um ato de resistência. Um ato de resistência, dentro do próprio universo da poesia. Gosto de pensar a poesia como um anti-poder.

Ou tem dentro de si um Sísifo aprisionado à espera de encontrar um fulgurante verão dentro do mais profundo inverno?
Gosto muito de montanhas, quer na realidade quer como metáfora. Há muito que me libertei da pedra de mármore. Esta, devidamente trabalhada, deve estar a adornar o chão de um dos salões de que falou atrás, numa das suas perguntas. Cada vez mais os verões são menos fulgurantes e os invernos menos profundos. E espero que entre eles se interponha sempre o outono.

O seu novo trabalho a sair em breve é a tradução de “Hojoki: reflexões da minha cabana” o livro de um poeta japonês do século XIII. São poemas de um homem sábio, um estóico com quem aprendemos o valor do despojamento, a aceitação da morte, a fusão com a natureza.
Como foi que encontrou Kamo no Chomei e porque decidiu traduzi-lo? Há ali uma beleza absolutamente pungente.
Li o “Hojoki” (a versão francesa) há muitos anos e desde aí que tinha a vontade de o traduzir. Agora durante a pandemia, impôs-se-me com urgência, a sua tradução. Talvez porque é um livro de reflexões em tempo de pandemia, que se pode aplicar ao tempo atual, e que foi escrito no Japão do século treze, numa linguagem extremamente poética e que aborda os temas que refere na pergunta.

É esse o caminho, quase monástico, certamente interior que gostaria de fazer? Ou não se libertará jamais dos grilhões da vida burguesa?
Não tenho apetência para a vida monástica. No percurso de alguns poetas esse caminho impôs-se de uma forma absoluta (lembro-me do caso mais recente do Daniel Faria), mas não é esse o caminho da maioria dos poetas. Embora por vezes procure nos cafés movimentados o silêncio ensurdecedor (ou o ruído silencioso) das celas dos monges.

Ao longo de muitos livros, muitos temas, muitas latitudes nunca abandona a ironia. Porque é que a ironia é tão importante? Sente que estamos em risco de a perder pelo culto do politicamente correto, e por uma decrescente capacidade de ler nas entrelinhas?
Dos vários recursos a que podemos deitar mão, a ironia é daqueles que pode ser simultaneamente terno e demolidor. E também perigoso. Daí advém o prazer de a usar.

Está a preparar uma antologia de poemas escritos por mulheres sobre a experiência do parto, do corpo feminino e dos seus segredos.
O livro não é propriamente sobre a experiência do parto, embora tenha poemas sobre essa experiência. São poemas que abordam uma parte do universo feminino, que habitualmente não era tratada em termos poéticos, sendo que essa abordagem poética é feita exclusivamente por mulheres. Como outras antologias, esta permitiu-me descobrir poetas e poéticas que dificilmente descobriria de outro modo. Devo confessar que o facto de ser obstetra e ginecologista não é alheio a ter escolhido este tema.

A tradução tem sido parte importante do seu trabalho poético.
Não estou sempre a traduzir. Nem posso. Até porque traduzir implica uma disponibilidade mental que raramente tenho. Aprende-se muito a traduzir (a melhor maneira de conhecer um poeta é traduzi-lo). Traduzo para me aproximar de determinado poeta. E costumo partilhar essas aproximações. Esse exercício é também um exercício de humildade. E de solidariedade com os outros poetas. Felizmente há excelentes poetas espalhados pelo mundo, que todos os dias se levantam e se interrogam e nos interrogam. E nos inebriam.