“Gatilho”. É este o nome dado aos estímulos que desencadeiam recordações. Podem ser músicas, cheiros ou, de forma mais prosaica, notícias. Como no outro dia quando, de repente, fui parar a 2008 e ao momento em que recebi uma mensagem de texto de um amigo. Qualquer coisa tão banal como, “Tens de ouvir isto.” As coisas que o nosso cérebro regista. Mas havia uma razão. E, não, não era essa. Naquele momento, e de um tiro só, aquele curador informal não só me apresentava um programa de rádio como me introduzia no mundo dos podcasts. Com os anos a amizade esmoreceria, mas “This American Life” passou a fazer parte da minha vida. Quanto àquilo que eu tinha de ouvir, foi notícia no início de 2021 ao tornar-se o primeiro podcast incluído no National Recording Registry, uma lista de gravações consideradas tão importantes que são conservadas na Biblioteca do Congresso norte-americano. E foi este o gatilho que desencadeou a recordação.

O episódio chama-se “The Giant Pool of Money”. Uma hora a explicar a crise financeira que começou em 2007 nos Estados Unidos e pouco depois estava a ameaçar a economia global. A mesma que aparece muitas vezes referida nos jornais como “crise do subprime” e que agora voltou a ser falada, com a atribuição do Óscar de Melhor Filme a “Nomadland” de Chloe Zhao. O tema só por si não me chamaria a atenção – embora o título seja um ótimo esforço. Mas o tal amigo reforçou com um teaser, “Vais ficar a perceber como tudo aconteceu.” E isso já me interessou. Porque se há sensação que tenho com a economia e termos como “subprime” é que não percebo nada.

Mesmo passados todos estes anos, ouvir um episódio de “This American Life” é entrar num mundo à parte. Pessoas que explicam coisas usarão palavras como “storytelling”, conceito hoje muito na moda, mas que em 1995, ano em que Ira Glass criou o programa para uma rádio de Chicago, seria uma excentricidade. Da sonoplastia cuidada à narração em vários atos. Da multiplicidade de entrevistados ao registo pessoal, seja ele humorístico, reflexivo ou ambos. Como se tivéssemos um amigo interessante e bem-informado a contar-nos uma história que lhe aconteceu. E que começasse cada uma das suas narrativas com um pequeno prólogo.

[ouça o podcast “This American Life” através do Spotify:]

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“The Giant Pool of Money” arranca com o burburinho de uma festa de gala no hotel Ritz Carlton. Piano, gargalhadas. Só pelo tipo de vozes dá para perceber que aquela gente está de smoking. É uma homenagem ao criador da ferramenta financeira que permitiu a crise do subprime. Logo a seguir estamos na outra margem do rio, em Brooklyn, numa reunião de vítimas da crise. Pessoas endividadas, prestes a perder as suas casas. Não há qualquer tipo de ruído de fundo. Só desespero. Depois entra Glass, o anfitrião. Entrevista os autores das peças. Há conversa de bastidores: motivações, dúvidas, dificuldades. Estamos todos em casa, sem filtros. E lança o programa: “[vamos] explicar passo a passo como tudo isto aconteceu e vamos conhecer algumas das pessoas que criaram este desastre económico.”

Há quem goste de dividir o mundo em dois: Ocidente Vs. Oriente; gente que faz Vs. gente que acontece; ficção Vs. não-ficção. “This American Life” é o que acontece quando se narra a realidade como se fosse ficção, com a vantagem de não ter de fazer sentido. “Aquilo que me chamou a atenção nisto tudo foi uma coisa chamada empréstimo NINA”, começa o jornalista Alex Bloomberg. “Quando a crise imobiliária ainda era apenas uma bolha imobiliária, um tipo ao telefone disse-me que NINA significa ‘no income no asset’. Como quando alguém nos empresta um monte de dinheiro, sem antes verificar se temos algum tipo de rendimento [income] ou bens [assets].” Pouco depois, ouve-se um trabalhador precário que contraiu um destes empréstimos. “Ter-se-ia emprestado o dinheiro a si próprio?”, perguntam-lhe. Ao que responde, “Eu não me teria emprestado o dinheiro e ninguém que eu conheça me teria emprestado o dinheiro. Conheço gajos que são criminosos e te partem uma rótula se não pagares, e eles não me teriam emprestado o dinheiro.” A partir daqui, como se costuma dizer sobre os melhores policiais, estamos agarrados.

Apesar do tema denso e difícil, “The Giant Pool of Money” suscitou um feedback 10 vezes superior à norma. A mensagem que recebi do meu amigo, de resto, foi prova disso. Na altura, “This American Life” já era uma instituição. Treze anos de vida, mais de 350 episódios, duas temporadas de uma adaptação televisiva que só não continuou porque os produtores não tinham disponibilidade. Comprei o DVD. Ainda se comprava DVDs. O episódio em questão recebeu múltiplos prémios, incluindo o Peabody, “pela claridade irresistível na forma como explica a crise financeira em que estamos, e ainda mais por ter ido para o ar tão cedo, em Maio de 2008”. E o programa prosseguiu o seu caminho. Vários episódios inspiraram séries, como “Unbelievable”. Alguns dos membros da equipa ameaçaram superar o criador, com sensações como “Serial” e “S-Town”. Até a abordagem fez escola. Hoje, com 736 emissões feitas, estima-se que cada episódio seja ouvido por 2,2 milhões de pessoas na rádio, além dos 2,6 milhões que o descarregam sob a forma de podcast, todas as semanas.

Especula-se bastante sobre a fórmula de sucesso. Para além da consternação óbvia: como é que um homem com tão má dicção pôde tornar-se timoneiro daquele que será um dos mais famosos programas radiofónicos do mundo? Sabe-se que cada um dos episódios envolve dezenas de horas de trabalho, desde a pesquisa à supervisão musical. Calcula-se que cerca de 80 por cento das entrevistas não vá para o ar. E arrisca-se que cada história seja construída em torno das citações dos entrevistados. Quanto mais marcantes, melhor. Mas além da estrutura, o que fica são os temas. A forma de olhar para a realidade como se fosse a primeira vez. Um espanto e fascínio permanentes. E se?

Tento lembrar-me de alguns episódios. Aquele em que perguntavam às pessoas que tipo de super-poder prefeririam, se voar ou ser invisíveis. A história do casal que clonou o seu boi favorito porque não suportava a sua ausência. O homem que encontrou um vazio legal num tipo de seguro de vida e arranjou forma de dezenas de pessoas partirem deste mundo com um último ato de generosidade. No outro dia ouvi um episódio chamado “Amateur Hour”, a hora dos amadores: o que acontece quando se põe pessoas em situações para as quais não têm qualquer tipo de qualificação, mas que mesmo assim dão o seu melhor? Nenhuma destas histórias tem uma conclusão evidente. Não é esse o objetivo. E aqui podemos voltar ao início. Tal como se explica o regulamento do National Recording Registry, que inclui entre os seus maiores tesouros o hino nacional e o discurso “I Have a Dream” de Martin Luther King, são selecionadas gravações que sejam “importantes do ponto de vista histórico, cultural ou estético, e/ou informem ou reflitam a vida nos Estados Unidos.” Ou seja, gatilhos.

Disponível em: thisamericanlife.org, Apple Podcasts, Spotify, Google Podcasts
Para quem: todos os que têm o super-poder de detetar o extraordinário na vida de todos os dias