Trezentos e sessenta e cinco dias multiplicados por incontáveis anos de história potenciados por diferentes coordenadas, geografias e culturas. O passado é um país imenso. Já para não falar em rotas pessoais. Contextos pandémicos. Finais de ciclo cheios de ansiedades: velhas, novas e assim-assim. Para que o que ficou para trás não nos assombre e também não caia no esquecimento, aqui fica uma seleção de algumas das melhores reflexões em torno da memória que nos passaram pelos ouvidos. Das guerras privadas às mundiais, passando pelo humor, a arte e os segredos de Hollywood. E para que não lhe falte nada, ainda lhe sugerimos espaço mental para refletir. Como? É deslizar até ao fim.

“9/12”

Na véspera e na antevéspera do dia 11 de setembro de 2011, o comediante norte-americano George Carlin subiu ao palco do hotel MGM Grand, em Las Vegas, e partilhou com o público o seu grande amor por desastres naturais. Tragédias em que morrem muitas pessoas. Grandes dramas humanos e civilizacionais. Criado para um especial da HBO em que nunca chegaria a entrar, o trecho só voltaria à vida depois da morte do humorista, quando a filha se deparou com as gravações áudio dos espectáculos. Título provisório: “I Kinda Like It When a Lot of People Die” (“Eu Até Gosto Quando Muitas Pessoas Morrem”).

Passados 20 anos, esta é uma das histórias que permitem ao jornalista Dan Taberski (“Missing Richard Simmons”) refletir sobre a forma como os atentados contra o Pentágono e as Torres Gémeas afetaram a nossa perceção dos limites do humor. “Too Soon” é o segundo dos sete episódios de “9/12” (em português, 12 de setembro), o podcast que em 2021 nos convidou a repensar o 11 de setembro e perceber o impacto que estes ataques tiveram na cultura americana e, por inerência, na cultura global.

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Cada capítulo, um tema. Da xenofobia ao extremismo, passando pela memória que escolhemos guardar de tudo isto. Cada tema, várias histórias. Dos participantes num reality-show isolados num navio ao autor de uma série de teorias da conspiração, passando por aquela vez em que a CIA pediu ajuda a um grupo de realizadores de Hollywood (incluindo David Fincher e Spike Jonze) para imaginarem os ataques que os inimigos da América poderiam vir a engendrar. O episódio chama-se “A Failure of Imagination”.

Sob o signo do clássico popularizado por Dinah Washington “What a Difference a Day Makes”, Taberski e a sua equipa atraem-nos com os ângulos mais inesperados, agarram-nos com a pertinência da abordagem e fazem-nos sorrir com o tipo de insólito só possível na não-ficção. O jornalista é um entrevistador astuto e um narrador empático. A envolvência é a de alguns dos melhores produtos do género, com tanto de história contada à lareira como de virtuosismo técnico.

Como é viver num mundo que mudou de um dia para o outro? Quanto daquilo que somos hoje se deve a estes atentados? E será que devemos fazer por nunca esquecer ou o melhor é deixar passar? Taberski vai beber aos dois lados: os factos pertencem a quem os viveu; decidir como viver daí em diante compete-nos a todos. Nas suas palavras: “As memórias vivem no presente. Independentemente da forma como escolhemos recordá-las, quão fundo mergulhemos no passado, o sentido que nos faz é sempre moldado pelo hoje.”

Onde: Wondery, Amazon Music, iTunes, Spotify
Para quem: Todos aqueles que se lembram de onde estavam quando o segundo avião atingiu a segunda torre

“Stuff The British Stole”

Vamos imaginar a seguinte situação: o leitor está sozinho na sala escura de um museu, de frente para uma vitrine. Está distraído. Absorto nos seus pensamentos. De repente, soa um alarme. É uma sirene estridente. Entra-lhe pelos ouvidos. Tira-lhe o ar. O ruído é de tal forma pungente que começa a sentir que se dirige contra si. Terá por alguns instantes perdido o juízo e roubado alguma coisa? Volta a olhar para a vitrine, apalpa os bolsos, verifica se não tem as mãos amarelas. Até que se faz luz: não foi o estimado leitor que roubou o museu; foi o museu que roubou a peça.

Ao longo de séculos, o Império Britânico roubou muitas coisas. Não terá sido o único. Grande parte repousa hoje em respeitadas instituições. Durante um ano, o jornalista australiano Marc Fennell viajou pelo mundo e pelos tempos à boleia de artefactos encontrados em museus. De Londres foi até à Índia, à China, à Nigéria, à Nova Zelândia e mais. Deu de caras com narrativas sobre guerras, tortura e genocídios ou, nas suas palavras, “com a história menos polida” do Império Britânico. Considerado um dos melhores podcasts de 2020, “Stuff The British Stole” (Cenas que os Britânicos Roubaram) oferece uma nova perspetiva sobre o presente a partir da história da arte e do colonialismo.

Onde: Spotify; iTunes
Para quem: Amigos a braços com heranças misteriosas 

“You Must Remember This”

Há coisas que não se esquecem. Às vezes é uma tragédia que nos confidenciam. Outras, uma palavra pronunciada de determinada forma em determinado momento. Outras ainda, um pormenor. Como aquele hábito que Marilyn Monroe tinha de se sentar junto a parques infantis para ver as crianças brincar. Já uma estrela, já destroçada por não conseguir engravidar.

A história tem muitas décadas e este relato em particular conta com quatro anos: faz parte do extraordinário podcast sobre o lado privado, secreto e esquecido de Hollywood, “You Must Remember This”. A autora dos já mais de 200 episódios disponíveis é a crítica e jornalista norte-americana Karina Longsworth e o título, retirado do clássico “Casablanca”, indicia já o tipo de histórias, as dos anos dourados da Indústria Cinematográfica norte-americana, muitas vezes em séries de mais de um episódio.

Entre os mais recentes, encontram-se especiais dedicados ao psicopata Charles Manson, às rainhas das bisbilhotices Hedda Hopper e Louella Parsons e aquela a quem a autora chama, “A Mulher Invisível”, a argumentista, produtora e executiva Polly Platt, decisiva nas carreiras de Tatum O’Neal, Barbra Streisand, Cameron Crowe e Wes Anderson, mas apenas recordada pelo affair do marido, o realizador Peter Bogdanovich, com a actriz Cybill Sheperd. O episódio de Marilyn inclui-se numa série intitulada “Dead Blondes”. A não perder.

Onde: iTunes, Spotify ou no site do podcast
Para quem: Sabe distinguir entre Howard Hawks e Hudson Hawk 

“Memory Palace”

Chama-se “Palácio da Memória” à técnica mnemónica usada para ordenar e arquivar informação dentro das nossas cabeças. É também o nome do premiadíssimo podcast do autor e argumentista norte-americano Nate DiMeo, que até já deu origem a um livro traduzido para português do Brasil pela Todavia. O tema de um e outros é o mesmo: as pequenas histórias que acontecem à sombra da grande história – e que a iluminam de ângulos inesperados. De breves biografias de gente comum em situações extraordinárias a poéticas cronologias de pormenores que fizeram toda a diferença. Já um dos podcasts mais longevos da curta história dos podcasts, “Memory Palace” funciona como um puzzle que não é suposto organizar; apenas apreciar. O autor sugere que se oiçam episódios ao calhas, que não se leia a descrição antes de começar, e até disponibiliza uma ferramenta de escuta aleatória no seu site pessoal.

Onde: Spotify, iTunes, Radiotopia e no site do podcast
Para quem: Chumbou a História mas adora histórias

“The WALKING podcast”

Numa altura em que a Internet nos alicia com tudo a toda a hora, por vezes é difícil encontrar espaço mental para parar e refletir – duas condições essenciais a qualquer balanço de final de ano. Por sorte, há dois anos o autor e jornalista norte-americano Jon Mooallem começou a gravar o som ambiente dos seus passeios e fez disso um podcast. Passos, galhos que se partem, um riacho que corre. Uma hora disto. Às vezes mais, como no episódio intitulado “Election Night Special Coverage Special”, que chega quase às quatro horas de caminhada, incluindo uma paragem numa padaria. Com um registo entre os ambientes meditativos new age e o universo fetichista do ASMR (“Autonomous sensory meridian response”, na origem), aquilo que na prática é uma simples gravação do som de um homem a andar na natureza transforma-se num portal para outra dimensão.

Onde: iTunes, Spotify
Para quem: Todos os anos diz, “é desta que me mudo para o campo”