Há momentos em que percebemos que somos mais conservadores do que pensávamos. Que temos sido vítimas dos nossos preconceitos. Ou da nossa intuição. Momentos, diria um bom marketeer, de expansão de consciência. No caso, sem drogas – mas sobre drogas. Da cocaína ao café. Do efeito placebo ao tráfico de estupefacientes. No podcast “Psychoactive”, o homem que a revista Rolling Stone apelidou de o “verdadeiro czar da droga”, o ativista Ethan Nadelmann, desafia-nos a repensar a nossa relação com as substâncias psicoativas. Enquanto indivíduos e enquanto sociedade.

Como alguém que acaba de regressar de uma viagem estimulante, a tentação é começar de imediato a partilhar o que se ouviu. Factos como, “Nunca houve uma sociedade sem drogas”. Argumentos do tipo “Todos nós usamos algum tipo de droga”. Ou advertências do género “Numa altura em que a canábis já foi legalizada em alguns estados norte-americanos, é preciso ter cuidado com os excessos da economia de mercado”. Antes de partir, contudo, convém saber qual é o programa – e quem é o guia.

Em 2013, Nadelmann, de 64 anos, foi considerado pela Rolling Stone a “principal força por trás da legalização da marijuana na América”. Filho de um rabino de Nova Iorque, apaixonou-se pelo tema na Universidade, tanto por causa do seu próprio consumo – “por que razão era eu definido como criminoso por estar a fumar um charro, se não estava a fazer mal a ninguém?”, explica no podcast – como pelo facto de ser uma área que cruza as relações internacionais com a justiça criminal. “Em termos académicos, era um território não cartografado”, acrescenta.

[ouça “Psychoactive” através do Spotify:]

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Viviam-se então os anos 80 e a guerra contra as drogas promovida pelo presidente Ronald Reagan. Nadelmann estudava em instituições tão prestigiadas como a Universidade de Harvard e a London School of Economics. Avançaria depois para a docência na Universidade de Princeton. Mais tarde cofundaria e dirigiria – durante mais de 20 anos, até 2020 – a Drug Policy Alliance, uma ONG que defende os princípios compassivos e liberais da redução de danos (em oposição à guerra contra as drogas).

“Um dos principais obstáculos à reforma da política de drogas tem sido a inexistência de um debate aberto e honesto”, afirma na introdução a “Psychoactive”. E é isso que acontece nos 12 episódios (de 40 previstos) já disponíveis. Nadelmann convida ativistas, cientistas, políticos e celebridades a falar sobre tudo aquilo que possa dizer respeito a todo o tipo de substância que afete de forma temporária a perceção, o humor, o comportamento e a consciência. E quando se diz “tudo” é “tudo”. De orgias gay e “chemsex” (práticas sexuais potenciadas pelo uso de drogas) com o colunista Dan Savage às vantagens da regulação dos cigarros eletrónicos com o ativista antitabaco Clive Bates. Do aumento dramático no número de mortes por overdose com o académico especialista em mercados ilícitos Dan Ciccarone à defesa da legalização das drogas nas Américas com o ex-presidente da Colômbia e Prémio Nobel da Paz de 2016 Juan Manuel Santos.

O projeto surgiu quando o realizador Darren Aronofski o abordou para criar um podcast sobre psicadélicos a ser produzido pela sua Protozoa Pictures. Os dois tinham-se conhecido quase 20 anos antes de uma forma apropriada: através do guia das respetivas primeiras experiências com ayahuasca. Nadelmann contrapôs um programa não apenas sobre psicadélicos, mas sobre todo o tipo de drogas. Na sua opinião, o desafio principal é aprendermos a viver com drogas de uma forma que nos cause o mínimo dano possível e, em alguns casos, o máximo bem possível.

[uma TED Talk com Ethan Nadelmann, em 2014:]

Nadelmann é o anfitrião perfeito: informado, empático e dinâmico. Está ali para ouvir, não para pregar – embora se perceba que sabe bem o que cada convidado vai dizer. E nem todos têm uma relação de tanta abertura com estas substâncias. Mais do que uma vez, rebate com dados seus, seja da sua experiência pessoal, profissional ou ambas. O contraditório é um modo de vida. Não há fel ou animosidade; o tom – incluindo o da sua voz – é caloroso e entusiástico. Torna-se claro que estas pessoas estão aqui reunidas numa perspetiva de saúde pública e direitos humanos.

Um dos episódios mais fascinantes é logo o primeiro, com o médico Andrew Weil. Excelente comunicador, é uma das principais figuras mundiais da medicina integrativa (combina a abordagem convencional baseada em evidência com práticas tradicionais e alternativas), o que pode afastar de imediato os ouvintes mais cartesianos. O que é uma pena, porque, mais do que promover algum tipo de prática, este professor da Universidade de Medicina do Arizona desafia uma série de ideias feitas. Como a distinção entre tipos de drogas (“não existem boas ou más drogas; apenas boas ou más relações com drogas”); o desdém pelo efeito placebo (“Não é uma forma de ‘enganar’ os doentes. As respostas ao placebo vêm de dentro – é isso a medicina”); ou o tipo de substâncias que nos podem levar a estados modificados de consciência (“para mim, mangas maduras”).

Em nenhum lugar ao longo do podcast se incentiva ao uso de drogas. Nadelmann, aliás, recomenda aos ouvintes que procurem o conselho de especialistas, num aviso repetido em todos os episódios. O que não quer dizer que não se partilhem experiências. Por razões de assiduidade no programa, o prémio de frequência vai para o anfitrião, que descreve o consumo de cocaína como beber demasiado café e ter um pingo no nariz, o de canábis como ocasional desde os 18 e o de psicadélicos como uma coisa boa uma vez por ano. “Os psicadélicos são desperdiçados nos jovens”, repete. “O seu verdadeiro valor é permitirem-nos ir mais fundo. São um bom ritual anual para agitar o sedimento intelectual e emocional que pode instalar-se.”

E se o entusiasmo face à qualidade do podcast – que é excecional – pode confundir-se com algum evangelismo em relação ao uso de drogas, saliente-se que grande parte do valor deste “Psychoactive” reside na honestidade e no equilíbrio. Como quando, mais do que uma vez, se diz que não há qualquer evidência científica que sustente os alegados benefícios do uso de microdoses (uma tendência atual). Quando se questiona se o café não será uma droga dura. Ou quando, num momento quase enternecedor, Nadelmann lamenta a banalização do uso da canábis, que ajudou a legalizar: “Preocupa-me por vezes que o facto de ser consumida de forma tão blasé possa fazer com que deixe de ser uma coisa tão especial.”

Para quem: Não começa o dia sem beber uma bica
Onde: Spotify, Apple Podcasts, iHeart Radio