894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

"A Praça dos Heróis". O desfile dos fantasmas austríacos (e dos esqueletos de muitos outros)

Este artigo tem mais de 3 anos

A peça memorável de Thomas Bernhard é o espectáculo mais político de David Pereira Bastos. Os esqueletos nos armários da Áustria apresentam-se primeiro no Cartaxo, depois espalham-se pelo país.

Rita Loureiro é um dos nomes que integra um elenco que conta também com Ana Sampaio e Maia, Bruno Simão, Flávia Gusmão, Manuel Coelho, Miguel Sopas, Paulo Pinto e Sílvia Figueiredo
i

Rita Loureiro é um dos nomes que integra um elenco que conta também com Ana Sampaio e Maia, Bruno Simão, Flávia Gusmão, Manuel Coelho, Miguel Sopas, Paulo Pinto e Sílvia Figueiredo

Fotografias de Filipe Ferreira

Rita Loureiro é um dos nomes que integra um elenco que conta também com Ana Sampaio e Maia, Bruno Simão, Flávia Gusmão, Manuel Coelho, Miguel Sopas, Paulo Pinto e Sílvia Figueiredo

Fotografias de Filipe Ferreira

Podia ser uma obra de Piet Mondrian, com formas geométricas menos rígidas e maior abundância de cores. Mas não é. É roupa espalhada — casacos, calças, camisas, muitas camisas, e ainda corpos (talvez o mais justo seja dizer cadáveres) feitos de roupa, que sobressaem na paisagem — que cobre todo o chão do palco. Ao fundo, um banco de baloiço de castigo contra a parede, malas e bagagens que indicam que o tempo nesta casa está a acabar. É esse cenário de beleza rara que a governanta, a senhora Zittel, percorre que nem barata sem rumo, arrumar por arrumar, passar a ferro para não deixar a tristeza assumir a forma de lágrimas de uma mulher sentada num banco. O professor morreu. Melhor: o professor suicidou-se. E Zittel não sabe agora o que será. Repete frases do seu patrão — “Ou lhe corto as unhas, ou lhe leio Tolstói” — como uma espécie de memória que ainda não aceitou o fim.

A Praça dos Heróis, texto do autor austríaco Thomas Bernhard, é a nova criação de David Pereira Bastos que se estreia esta sexta-feira no Centro Cultural do Cartaxo integrado na Rede Eunice Ageas — projeto de circulação nacional de espectáculos produzidos e coproduzidos pelo Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII) —, e que ainda vai levar o espectáculo ao Teatro Municipal de Portimão (22 de maio), ao Centro de Artes do Espectáculo de Portalegre (29 de maio) e ao Teatro Municipal de Bragança (4 de junho). E de 20 a 22 de agosto vai passar também pelo Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém.

Escrita em 1988, a peça procurou celebrar o centenário do Burgtheater (teatro histórico localizado em Viena) e assinalar os 50 anos da anexação da Áustria pela Alemanha nazi — a 13 de março de 1938 na Heldenplatz, Praça dos Heróis, Viena, onde milhares de austríacos exaltavam por Adolf Hitler. O espectáculo viria a ser estreado ainda nesse ano, com manifestações à porta — a favor e contra — devido a algumas frases do texto terem sido divulgadas pela comunicação social austríaca. A Praça dos Heróis coloca o dedo na ferida desse passado da Áustria enquanto aliado do Terceiro Reich e, portanto, como afirma David Pereira Bastos, “foi um escândalo nacional.” O mesmo que aproveita para relembrar que em 1986 Kurt Waldheim — ex-Secretário Geral da ONU entre 1972 e 1981 — já havia sido eleito Presidente da República (sê-lo ia até 1992), ainda que durante a campanha presidencial se tenha tornado público que Waldheim tinha servido como SA, isto é, no exército nazi, nos Balcãs, mais precisamente na Grécia e na Jugoslávia, durante a Segunda Guerra Mundial. Os esqueletos da identidade de extrema-direita austríaca saltavam dos armários.

"Muitas vezes, parece-me que o número de personagens em Bernhard só existe para veicular a dialética, porque é como se a mesma voz estivesse distribuída em várias personagens", diz-nos David Pereira Bastos

Mais de 30 anos depois da publicação e da estreia do dito texto, David Pereira Bastos salienta a sua profunda atualidade: “Lembro-me de o Manuel Poças [produtor do espectáculo], que me tinha falado desta peça, dizer que achava que este era um texto altamente pertinente tendo em conta a ascensão da extrema-direita em todo o mundo. Mas quando decidimos fazê-lo estávamo-nos a referir a uma realidade internacional, exterior a Portugal. Estreámos o À Espera de Godot na mesma altura em que os alunos da École des Maîtres também estavam no TNDMII e lembro-me de um deles, italiano, depois da abertura da temporada, dizer-me que éramos um país com muita sorte, o último país da Europa sem assento parlamentar da extrema-direita. Entretanto…”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A vontade para A Praça dos Heróis vem precisamente dessa “cumplicidade gerada” entre Manuel Poças, David Pereira Bastos e Bruno Simão, aquela pergunta do “então e a seguir, o que fazemos?”. E não foi fácil, porque o texto é denso, largo e as letras da edição portuguesa são minúsculas:

“Lembro-me que demorei bastante tempo a ler, até porque a edição que existe em Portugal tem uma letra bastante pequena e é muito texto. Conheço algumas coisas do Thomas Bernhard e há textos mais divertidos, mais funcionais e com temáticas mais gerais. Este, como tem uma temática super específica relativa à realidade austríaca, é mais difícil de estabelecer uma ligação e essa foi uma das preocupações principais, vamos estar aqui a falar de uma série de elementos que se reportam a uma realidade que para a maior parte das pessoas não será imediata”, explica David Pereira Bastos.

Mas entre o desvario da senhora Zittel, a saudade do professor, o aparecimento do irmão e da mulher — que vieram do interior, mais precisamente da localidade de Neuhaus, onde têm uma casa de campo —, bem como das filhas e ainda de alguns amigos, para o funeral, a especificidade austríaca serve de ponto de relação para intenções e reflexões portuguesas. Até pelas coisas pequenas: a forma como Pereira Bastos coloca a governanta e a sua assistente a beber minis e a comer amendoins, por exemplo.

O professor Schuster era um académico sério, com gosto pela intelectualidade, por autores russos, pelo virtuosismo da arte. Chegou a dar aulas e a viver em Oxford, mas depois decidiu-se por Viena, sabendo que essa opção podia ser o seu fim. Não aguentava o ruído vindo da Heldenplatz, que todos os dias lhe invadia a casa, provavelmente como memória dos vivas ao nazismo aquando da anexação. Robert, seu irmão, por outro lado, decidiu rumar a Neuhaus para não mais ouvir a berraria. A tranquilidade do campo era também nefasta para o professor, sobretudo pela doença da mulher, que o atazanava por completo — além de que há quem possa não gostar da acalmia dos prados.

A causticidade da escrita de Bernhard — profundamente crítica em relação ao seu país — não deixa de estar evidente na figura de Robert, o irmão. Não há como não lhe atribuir a cínica impavidez de quem baixou os braços, de quem vai para longe para se esquecer como vão as modas nos locais de decisão. O irmão antagónico, o suicídio, tudo formas habituais da escrita do austríaco segundo Pereira Bastos:

“A questão do suicídio é algo muito recorrente na obra do Bernhard, como há outras, a questão do irmão enquanto termo de comparação. Acho que a função deste professor que se suicida, desta figura que morreu, tem que ver com a intransigência, moral e intelectual, intransigência perante os mecanismos de auto-ilusão. E esta oposição entre o professor que se suicidou e o irmão que se manteve vivo é precisamente essa, toda a gente sabe porque é que o professor se matou, a diferença é que eles suportam aquela realidade e aquele homem — que tinha os traços característicos de algumas personagens do Bernhard: a mania da precisão, a intransigência moral, traços quase obsessivo-compulsivos — não. E, portanto, esta oposição, o tipo que se suicidou porque já não conseguia suportar e compactuar com aquilo que se vivia, e o irmão que já não protesta, sabe o que se está a passar, mas comprou a sua casa de campo e consegue, de alguma forma, viver afastado das questões.”

E que lugar tem Neuhaus (pequeno município a cerca 300 de kms de Viena; curiosamente Neuhaus está localizada no estado de Caríntia, do qual Jörg Heider, um dos principais dirigentes do FPÖ na viragem do século, viria a ser Governador) no plano menos concreto? O que representa, além de ser a palavra mais repetida no texto?

"Neuhaus quer dizer casa nova. Mas é uma quimera, na medida em que implica a impossibilidade”, explica o encenador

“Neuhaus quer dizer casa nova. Mas sim, é essa coisa do escape, o escape do Robert, e ao mesmo tempo levanta a questão do motivo do suicídio do professor: o professor mata-se porque era impossível viver naquela casa devido à patologia da mulher. Precisamos de uma casa nova. O nome da localidade abre uma série de camadas. É a ideia de refazer a casa que se liga com a reformulação da identidade austríaca, ou seja, há uma Áustria que depois da queda do Império Austro-Húngaro e da Segunda Guerra Mundial fica em crise de identidade e que depois do regime nazi continua a tentar perceber onde é que vai ressituar-se. Neuhaus é uma quimera, na medida em que implica a impossibilidade”, afirma David Pereira Bastos.

Do primeiro momento, o tal quase monólogo de Zittel, passando pela fumaça que assola a chegada de Robert e das filhas do professor à sua casa — que nesse momento mais parece um cemitério —, A Praça dos Heróis leva-nos ainda a um jantar, o jantar final naquela morada. Aí, já com menos fumo e com muito mais cinismo e álcool à mistura, Robert parece cair na constatação da desgraça. O homem que se ri como sinal da sua impotência, da sua incapacidade, da sua falta de condição política. Aparece a frivolidade e a conformação, numa espécie de queda final do cisne chamado Robert, que apesar de colecionar muitos de interlocutores, parece completamente sozinho:

“Muitas vezes, parece-me que o número de personagens em Bernhard só existe para veicular a dialética, porque é como se a mesma voz estivesse distribuída em várias personagens. E também existem aquelas personagens que falam pouco, que ficam só a ouvir e que no fundo ficam ali a alimentar o discurso das personagens centrais. É um monólogo, é um teatro iminentemente discursivo, em vez de ser um teatro de ação”, esclarece o criador.

Talvez agora, no final, o cenário já não possa ser confundido com Mondrian. Talvez nunca tenha podido. Mas agora decididamente não, agora nem pensar. A luz é outra. E a explicação sempre teve a mania de estragar as imagens de cada espectador, mesmo quando este é jornalista: “O cenário levou muitas voltas, mas é da autoria do Bruno Simão e passámos ali por algumas ideias, pela ideia de bunker, que depois não foi possível levar a cabo por questões logísticas e o Simão agarrou-se à roupa no chão, tentando puxar pela ideia dos corpos — e de facto estão lá alguns. Isto tem que ver com o conceito de vala comum, ao mesmo tempo serve o ambiente da primeira cena, de uma casa que está a ser arrumada, em que as coisas estão a ser empacotadas. E pode remeter para as vítimas dos campos de concentração, para as vítimas da guerra.” E agora nem cortar as unhas, nem ler Tolstói deve salvar o que quer que seja.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.