Podia ser uma obra de Piet Mondrian, com formas geométricas menos rígidas e maior abundância de cores. Mas não é. É roupa espalhada — casacos, calças, camisas, muitas camisas, e ainda corpos (talvez o mais justo seja dizer cadáveres) feitos de roupa, que sobressaem na paisagem — que cobre todo o chão do palco. Ao fundo, um banco de baloiço de castigo contra a parede, malas e bagagens que indicam que o tempo nesta casa está a acabar. É esse cenário de beleza rara que a governanta, a senhora Zittel, percorre que nem barata sem rumo, arrumar por arrumar, passar a ferro para não deixar a tristeza assumir a forma de lágrimas de uma mulher sentada num banco. O professor morreu. Melhor: o professor suicidou-se. E Zittel não sabe agora o que será. Repete frases do seu patrão — “Ou lhe corto as unhas, ou lhe leio Tolstói” — como uma espécie de memória que ainda não aceitou o fim.
A Praça dos Heróis, texto do autor austríaco Thomas Bernhard, é a nova criação de David Pereira Bastos que se estreia esta sexta-feira no Centro Cultural do Cartaxo integrado na Rede Eunice Ageas — projeto de circulação nacional de espectáculos produzidos e coproduzidos pelo Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII) —, e que ainda vai levar o espectáculo ao Teatro Municipal de Portimão (22 de maio), ao Centro de Artes do Espectáculo de Portalegre (29 de maio) e ao Teatro Municipal de Bragança (4 de junho). E de 20 a 22 de agosto vai passar também pelo Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém.
Escrita em 1988, a peça procurou celebrar o centenário do Burgtheater (teatro histórico localizado em Viena) e assinalar os 50 anos da anexação da Áustria pela Alemanha nazi — a 13 de março de 1938 na Heldenplatz, Praça dos Heróis, Viena, onde milhares de austríacos exaltavam por Adolf Hitler. O espectáculo viria a ser estreado ainda nesse ano, com manifestações à porta — a favor e contra — devido a algumas frases do texto terem sido divulgadas pela comunicação social austríaca. A Praça dos Heróis coloca o dedo na ferida desse passado da Áustria enquanto aliado do Terceiro Reich e, portanto, como afirma David Pereira Bastos, “foi um escândalo nacional.” O mesmo que aproveita para relembrar que em 1986 Kurt Waldheim — ex-Secretário Geral da ONU entre 1972 e 1981 — já havia sido eleito Presidente da República (sê-lo ia até 1992), ainda que durante a campanha presidencial se tenha tornado público que Waldheim tinha servido como SA, isto é, no exército nazi, nos Balcãs, mais precisamente na Grécia e na Jugoslávia, durante a Segunda Guerra Mundial. Os esqueletos da identidade de extrema-direita austríaca saltavam dos armários.
Mais de 30 anos depois da publicação e da estreia do dito texto, David Pereira Bastos salienta a sua profunda atualidade: “Lembro-me de o Manuel Poças [produtor do espectáculo], que me tinha falado desta peça, dizer que achava que este era um texto altamente pertinente tendo em conta a ascensão da extrema-direita em todo o mundo. Mas quando decidimos fazê-lo estávamo-nos a referir a uma realidade internacional, exterior a Portugal. Estreámos o À Espera de Godot na mesma altura em que os alunos da École des Maîtres também estavam no TNDMII e lembro-me de um deles, italiano, depois da abertura da temporada, dizer-me que éramos um país com muita sorte, o último país da Europa sem assento parlamentar da extrema-direita. Entretanto…”
A vontade para A Praça dos Heróis vem precisamente dessa “cumplicidade gerada” entre Manuel Poças, David Pereira Bastos e Bruno Simão, aquela pergunta do “então e a seguir, o que fazemos?”. E não foi fácil, porque o texto é denso, largo e as letras da edição portuguesa são minúsculas:
“Lembro-me que demorei bastante tempo a ler, até porque a edição que existe em Portugal tem uma letra bastante pequena e é muito texto. Conheço algumas coisas do Thomas Bernhard e há textos mais divertidos, mais funcionais e com temáticas mais gerais. Este, como tem uma temática super específica relativa à realidade austríaca, é mais difícil de estabelecer uma ligação e essa foi uma das preocupações principais, vamos estar aqui a falar de uma série de elementos que se reportam a uma realidade que para a maior parte das pessoas não será imediata”, explica David Pereira Bastos.
Mas entre o desvario da senhora Zittel, a saudade do professor, o aparecimento do irmão e da mulher — que vieram do interior, mais precisamente da localidade de Neuhaus, onde têm uma casa de campo —, bem como das filhas e ainda de alguns amigos, para o funeral, a especificidade austríaca serve de ponto de relação para intenções e reflexões portuguesas. Até pelas coisas pequenas: a forma como Pereira Bastos coloca a governanta e a sua assistente a beber minis e a comer amendoins, por exemplo.
O professor Schuster era um académico sério, com gosto pela intelectualidade, por autores russos, pelo virtuosismo da arte. Chegou a dar aulas e a viver em Oxford, mas depois decidiu-se por Viena, sabendo que essa opção podia ser o seu fim. Não aguentava o ruído vindo da Heldenplatz, que todos os dias lhe invadia a casa, provavelmente como memória dos vivas ao nazismo aquando da anexação. Robert, seu irmão, por outro lado, decidiu rumar a Neuhaus para não mais ouvir a berraria. A tranquilidade do campo era também nefasta para o professor, sobretudo pela doença da mulher, que o atazanava por completo — além de que há quem possa não gostar da acalmia dos prados.
A causticidade da escrita de Bernhard — profundamente crítica em relação ao seu país — não deixa de estar evidente na figura de Robert, o irmão. Não há como não lhe atribuir a cínica impavidez de quem baixou os braços, de quem vai para longe para se esquecer como vão as modas nos locais de decisão. O irmão antagónico, o suicídio, tudo formas habituais da escrita do austríaco segundo Pereira Bastos:
“A questão do suicídio é algo muito recorrente na obra do Bernhard, como há outras, a questão do irmão enquanto termo de comparação. Acho que a função deste professor que se suicida, desta figura que morreu, tem que ver com a intransigência, moral e intelectual, intransigência perante os mecanismos de auto-ilusão. E esta oposição entre o professor que se suicidou e o irmão que se manteve vivo é precisamente essa, toda a gente sabe porque é que o professor se matou, a diferença é que eles suportam aquela realidade e aquele homem — que tinha os traços característicos de algumas personagens do Bernhard: a mania da precisão, a intransigência moral, traços quase obsessivo-compulsivos — não. E, portanto, esta oposição, o tipo que se suicidou porque já não conseguia suportar e compactuar com aquilo que se vivia, e o irmão que já não protesta, sabe o que se está a passar, mas comprou a sua casa de campo e consegue, de alguma forma, viver afastado das questões.”
E que lugar tem Neuhaus (pequeno município a cerca 300 de kms de Viena; curiosamente Neuhaus está localizada no estado de Caríntia, do qual Jörg Heider, um dos principais dirigentes do FPÖ na viragem do século, viria a ser Governador) no plano menos concreto? O que representa, além de ser a palavra mais repetida no texto?
“Neuhaus quer dizer casa nova. Mas sim, é essa coisa do escape, o escape do Robert, e ao mesmo tempo levanta a questão do motivo do suicídio do professor: o professor mata-se porque era impossível viver naquela casa devido à patologia da mulher. Precisamos de uma casa nova. O nome da localidade abre uma série de camadas. É a ideia de refazer a casa que se liga com a reformulação da identidade austríaca, ou seja, há uma Áustria que depois da queda do Império Austro-Húngaro e da Segunda Guerra Mundial fica em crise de identidade e que depois do regime nazi continua a tentar perceber onde é que vai ressituar-se. Neuhaus é uma quimera, na medida em que implica a impossibilidade”, afirma David Pereira Bastos.
Do primeiro momento, o tal quase monólogo de Zittel, passando pela fumaça que assola a chegada de Robert e das filhas do professor à sua casa — que nesse momento mais parece um cemitério —, A Praça dos Heróis leva-nos ainda a um jantar, o jantar final naquela morada. Aí, já com menos fumo e com muito mais cinismo e álcool à mistura, Robert parece cair na constatação da desgraça. O homem que se ri como sinal da sua impotência, da sua incapacidade, da sua falta de condição política. Aparece a frivolidade e a conformação, numa espécie de queda final do cisne chamado Robert, que apesar de colecionar muitos de interlocutores, parece completamente sozinho:
“Muitas vezes, parece-me que o número de personagens em Bernhard só existe para veicular a dialética, porque é como se a mesma voz estivesse distribuída em várias personagens. E também existem aquelas personagens que falam pouco, que ficam só a ouvir e que no fundo ficam ali a alimentar o discurso das personagens centrais. É um monólogo, é um teatro iminentemente discursivo, em vez de ser um teatro de ação”, esclarece o criador.
Talvez agora, no final, o cenário já não possa ser confundido com Mondrian. Talvez nunca tenha podido. Mas agora decididamente não, agora nem pensar. A luz é outra. E a explicação sempre teve a mania de estragar as imagens de cada espectador, mesmo quando este é jornalista: “O cenário levou muitas voltas, mas é da autoria do Bruno Simão e passámos ali por algumas ideias, pela ideia de bunker, que depois não foi possível levar a cabo por questões logísticas e o Simão agarrou-se à roupa no chão, tentando puxar pela ideia dos corpos — e de facto estão lá alguns. Isto tem que ver com o conceito de vala comum, ao mesmo tempo serve o ambiente da primeira cena, de uma casa que está a ser arrumada, em que as coisas estão a ser empacotadas. E pode remeter para as vítimas dos campos de concentração, para as vítimas da guerra.” E agora nem cortar as unhas, nem ler Tolstói deve salvar o que quer que seja.